Por Lesliê Fiais Mourad

Com a eclosão da pandemia da Covid-19, os governos estaduais e municipais se viram obrigados a impor à população medidas de restrição às atividades econômicas, voltadas a estimular o distanciamento social e a arrefecer, por consequência, os níveis de contágio da doença.

A retração econômica que daí adveio — e que ainda será sentida por algum tempo, ante a recessão que se abateu sobre os mercados globais — implicará, certamente, queda da arrecadação tributária. Os contribuintes, aliás, já enfrentam agudas dificuldades em arcar com os tributos deles exigidos, especialmente aqueles relacionados ao consumo, como o ICMS.

Nesse cenário, ganha novo fôlego a discussão sobre o acerto, ou não, do entendimento firmado pelo Plenário do STF no sentido da criminalização do comportamento do contribuinte que declara o ICMS devido, mas deixa de fazer o devido recolhimento, no prazo estipulado em lei.

Explique-se melhor. O STF, por meio do julgamento acima citado, sedimentou interpretação segundo a qual o ato de não recolher valores de ICMS previamente declarados poderia configurar, em tese, crime de “apropriação indébita”, a rigor do artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990, descrito como a conduta de “deixar de recolher, no prazo legal, o valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos” (grifo nosso).

Mencionada corte ponderou que, para identificação do crime, não bastaria, em todo caso, o inadimplemento pontual e episódico do ICMS declarado. Haveria ilícito penal, e não mera infração tributária, apenas se a falta de recolhimento fosse dotada, também, das seguintes características: I) existência de “dolo específico” do contribuinte (ou seja, vontade demonstrada de sonegar); e II) “contumácia” da conduta (é dizer, recorrência do não recolhimento dos valores devidos ao erário).

Para correto entendimento do assunto, vale esclarecer que o ICMS é imposto indireto, cujo valor é embutido, em regra, nos preços das mercadorias, juntamente com os demais custos e despesas das operações. Por essa razão, noutras palavras, o valor do imposto compõe, em princípio, o preço exigido pelos comerciantes, de forma a ser indiretamente suportado pelos adquirentes (ainda que, frise-se, o recolhimento seja de responsabilidade, exclusivamente, dos vendedores, na qualidade de “contribuintes de direito”).

No Brasil, diferentemente do que ocorre em outros países, a separação entre o preço da mercadoria em si, de um lado, e os tributos a ela incidentes, de outro, não é evidente. Não há, formalmente, nos documentos fiscais de praxe, indicação de qual seria o valor da operação sem a cobrança do ICMS — o que se justifica, dentre outros motivos, pelo fato de o imposto em comento ser calculado “por dentro” (é dizer, compor sua própria base de cálculo).

O STF, quando do julgamento da exclusão do ICMS junto às bases de cálculo do PIS e da Cofins, já havia positivado a necessidade de diferenciação, para fins tributários, entre as “receitas próprias”, auferidas pelo contribuinte para si, de modo definitivo, e as “receitas de transferências” (“receitas de terceiros”), recebidas pelo contribuinte a título provisório, destinadas ao posterior recolhimento aos cofres públicos.

Foi seguindo a mesma lógica que a Suprema Corte, por aparente coerência, ao deliberar sobre a questão da criminalização do inadimplemento habitual do ICMS declarado, interpretou que o não recolhimento do imposto significaria, na prática, a apropriação, pelo “contribuinte de direito”, de “receita de transferência” integrante do preço recebido, a ser repassada ao Fisco.

Pois bem. Não se nega que a decisão do STF, do ponto de vista tributário, terá o cunho de desestimular a sonegação. Esta orientação, contudo, padece de dois grandes vícios de ordem técnica.

O primeiro vício, do ponto de vista penal, verifica-se a partir do entendimento de que o STF equiparou, indevidamente, situações entre si inconfundíveis, a saber:

“I) Apropriação, pelo “responsável tributário” (terceiro obrigado a recolher tributo em nome de outrem, sem condição de contribuinte), de montantes retidos ou descontados do real “contribuinte de direito”. Este é o caso, por exemplo, dos empregadores (“responsáveis tributários”) que, ao descontarem o valor da contribuição previdenciária devida pelos empregados (“contribuintes de direito”), deixam de realizar o respectivo repasse à Receita Federal; e

II) Não recolhimento, pelo próprio “contribuinte de direito”, do tributo por este devido, cujo reflexo econômico, fora da esfera jurídica, tenha sido repassado a terceiros (“contribuintes de fato”)”.

Não há dúvidas de que o crime de “apropriação indébita” suscitado pelo STF, previsto no artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990, aplica-se ao primeiro dos cenários acima desenhados. Foi com essa situação em vista, aliás, que o crime de “apropriação indébita” foi estabelecido, desde o início, pelo legislador.

Mas e a conduta do “contribuinte de direito” do ICMS, que declarou e não pagou? O simples ressarcimento do ônus econômico do imposto, obtido via cobrança do preço, constitui “apropriação indébita”? Evidente que não! O ICMS, certamente, não é descontado nem cobrado junto aos adquirentes de mercadorias. Repasse do ônus econômico não se equipara a desconto ou cobrança, para os fins do mencionado artigo 2º, inciso II, da Lei nº 8.137/1990.

O Direito Penal não comporta interpretações extensivas ou analógicas. Ora, ao analisar o tipo penal da “apropriação indébita”, fica claro que a interpretação do STF só se sustentaria se pressuposto o alargamento do conceito de “tributo descontado ou cobrado” — o que não se pode aceitar.

Não bastasse isso, há, do ponto de vista tributário, um segundo vício, ainda mais grave. Só cabe falar em “apropriação indébita”, para qualquer fim, se realmente existir efetiva transferência do custo da incidência tributária do ICMS para o “contribuinte de fato” — circunstância que, embora muito usual, não pode ser pressuposta, especialmente para fins criminais. Deve haver prova inquestionável de que o custeio do imposto foi realizado, indiretamente, mediante transferência aos adquirentes, via formação de preço.

Essas considerações ganham importância no cenário de estagnação econômica ao qual se aludiu no início deste texto. Afinal, são em contextos como o atual que os níveis de inadimplência tributária aumentam significativamente, inclusive em relação ao não recolhimento de ICMS previamente declarado.

De mais a mais, em situações de arrefecimento econômico causado por eventos extraordinários (como a pandemia da Covid-19), não é incomum que distribuidores de mercadorias sejam obrigados a comercializar produtos com margens zeradas ou, até mesmo, negativas — o que tornaria plausível, pois a possibilidade de não repasse aos adquirentes dos custos tributários suportados pelos alienantes das mercadorias.

Ante o exposto, em conclusão, parece-nos que o assunto ainda não está devidamente equacionado, especialmente ante as extraordinárias circunstâncias em voga. Não se deve, portanto, descurar de boa política de gestão jurídica dos passivos de ICMS, a fim de que não se criem condições para a aplicação da questionável orientação incriminadora defendida pelo STF. Tal cuidado é ainda mais importante acaso o inadimplemento do imposto se estenda por vários meses — o que poderia ensejar a caracterização de eventual habitualidade.

Revista Consultor Jurídico, 18 de junho de 2020, 18h09