Na quarta-feira passada (3/4), foi protocolada na Câmara dos Deputados a PEC 45/2019, apresentada pelo deputado Baleira Rossi (MDB-SP), que pretende promover uma significativa reforma tributária na incidência sobre bens e serviços no Brasil. De acordo com a proposta, seriam extintos IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins, que seriam substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS). Vale registrar que não se trata de uma proposta de emenda constitucional qualquer, mas o desaguadouro legislativo de um profundo e competente estudo conduzido pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF)[1], recebido com bastante entusiasmo pela doutrina tributária nacional e por setores empresariais importantes, e que tem como objetivo principal o enfrentamento da complexidade do sistema tributário brasileiro, notadamente em relação aos tributos incidentes sobre a circulação de bens e serviços, com a simplificação da tributação e da gestão fiscal por parte das empresas.
Nesse sentido, a PEC 45/19 atende plenamente aos objetivos a que se propõe, uma vez que com a unificação dos cinco tributos que incidem sobre o consumo, hoje administrados por União, estados, Distrito Federal e municípios, em apenas um, o IBS, restará facilitada a gestão fiscal por parte das empresas, que hoje consumem muitas horas e recursos para conseguir a conformidade fiscal, quadro muitas vezes agravado pela guerra fiscal entre estados e entre municípios, que gera pluritributações espaciais tão danosas ao desenvolvimento econômico do país.
Com a unificação tributária proposta, o novo imposto passa a ser da competência da União, sendo instituído por lei complementar, com a repartição da receita tributária entre os três entes federativos. Aos estados e municípios restará a possibilidade de alterar uniformemente a alíquota singular, que viria a substituir o ICMS e o ISS, para todos os produtos e serviços. Nas operações interestaduais, o imposto passa a ser devido no destino, sendo aplicável a alíquota singular dos estados e municípios do destino.
Para evitar a guerra fiscal, não há, de acordo com a proposta, qualquer possibilidade de concessão de benefício fiscal no IBS, não restando espaço para extrafiscalidade, como reconhece a exposição de motivos da proposta. De acordo com essa justificação, o imposto deve ser informado pela neutralidade, devendo as desigualdades regionais ser combatidas pela União, e não pelos entes periféricos da federação.
A proposta também não tem pretensões relacionadas com a equidade do sistema tributário nacional. Ao contrário, tem o cunho bastante regressivo, com o fim da seletividade do IPI e do ICMS. Assim, serão aplicáveis as mesmas alíquotas em relação aos bens de consumo supérfluo e aqueles essenciais ao consumo popular. A única possibilidade de diferenciação de alíquota entre produtos não será efetivada pelo IBS, mas por impostos seletivos para desestimular o consumo de determinados bens, serviços e direitos, instituídos pela União.
De acordo ainda com a exposição de motivos da proposta, também é objetivo da medida restringir as vinculações orçamentárias dos tributos afetados, a partir da flexibilização da destinação constitucional das contribuições sobre o faturamento ou receita, sendo as finalidades de PIS e Cofins substituídas por alíquotas singulares do IBS. Nesse sentido, a maior flexibilidade orçamentária se dá em detrimento da seguridade social.
Não há dúvidas de que os objetivos simplificadores quanto à gestão fiscal das empresas é atingindo pela proposta, o que altamente louvável para o desenvolvimento econômico nacional. O mesmo não se pode dizer em relação à complexidade da gestão dos tributos e da repartição das suas receitas entre os entes federativos. Também a proposta não ataca o principal problema do sistema tributário nacional, que é sua iniquidade, gravando mais os mais pobres, em desatenção ao princípio da capacidade contributiva, o que é exacerbado ainda mais pelo aumento da regressividade representado pelo fim da seletividade pelo critério da essencialidade dos bens e serviços da tributação sobre o consumo.
Porém, é no princípio federativo que reside o principal problema da proposta, com a gigantesca redução da competência tributária dos estados e municípios, ainda que se sinalize com a manutenção das receitas atuais por meio da distribuição do produto da arrecadação do imposto por um comitê gestor nacional integrado por representantes de União, estados e municípios, que terá ainda a função de editar o regulamento uniforme do imposto, gerir a arrecadação centralizada, estabelecer critérios para a atuação coordenada dos entes federativos na fiscalização do imposto e representar a União, os estados e municípios, judicial e extrajudicialmente nas matérias relativas ao imposto, cujo contencioso judiciário se dará na Justiça Federal.
A leitura da exposição de motivos da PEC 45/2019 revela que os seus autores tiveram a preocupação de evitar a violação do princípio federativo ao declarar expressamente que os estados e os municípios manterão a sua autonomia para gerir suas próprias receitas, a despeito da extinção dos seus principais impostos.
Em relação a essas preocupações federativas, a proposta procura declarar, no próprio texto da emenda, que o IBS seria um imposto da competência de União, estados e municípios. Tal afirmativa se basearia na possibilidade de os entes federativos periféricos estabelecerem alíquotas singulares do imposto.
Porém, a dimensão fiscal do federalismo não se contenta com a repartição de receitas, sendo indispensável a adequada repartição de competências tributárias. Tampouco a possibilidade de os entes periféricos fixarem essas alíquotas singulares uniformes atendem à exigência de atribuição de competência tributária própria para cada um dos integrantes da federação.
Ao contrário do que sugere o texto da PEC 45/19, na sistemática do IBS, a competência para legislar sobre o tributo seria também da União, por meio da lei complementar. O regulamento do imposto também seria elaborado de forma centralizada, pelo comitê gestor nacional, que, embora integrado por representantes de estados e municípios, assim como o Congresso Nacional, é entidade federal, onde a autonomia de cada estado e de cada município não é exercida em qualquer medida.
Quanto aos benefícios fiscais, que hoje são aprovados através de convênios entre todos os estados no ICMS, fenômeno que constitucionalmente também é previsto no ISS entre os municípios, passam a ser vedados no IBS.
Assim, a proposta retira dos estados e dos municípios a competência sobre o IBS, atribuindo-a à União, ferindo a cláusula pétrea da federação, à medida que subtraem dos primeiros a possibilidade de definir regras a respeito de tributos responsáveis por parte substancial de sua arrecadação.
Em outro giro, a proposta também viola o princípio da capacidade contributiva, que, nos tributos sobre o consumo, se materializa no subprincípio da seletividade, suprimido do texto constitucional pela proposta em discussão.
A seletividade, que nos interessa neste estudo como índice de capacidade contributiva nos impostos sobre o consumo[2], se materializa pela variação de alíquotas em função da essencialidade do produto ou da mercadoria, e representa a modalidade mais adequada à aplicação do princípio da capacidade contributiva aos impostos indiretos, como o ICMS e o IPI, pois afere o índice de riqueza do contribuinte de fato, a partir do grau de indispensabilidade do bem consumido. Dentro dessa lógica, o consumo de bens populares é gravado com alíquotas menores, como ocorre com os produtos da cesta básica. Já os bens supérfluos são tributados com base em alíquotas maiores, como se dá com cigarros, bebidas e perfumes. De acordo com Ricardo Lobo Torres[3], há um uma verdadeira imunidade tributária implícita em relação aos bens necessários à sobrevivência biológica e social do cidadão em condições mínimas de dignidade humana.
Deste modo, a supressão da seletividade da tributação sobre o consumo, promovida pela proposta em comento, faz com que a capacidade contributiva deixe de ser aplicada em relação ao IBS, uma vez que a tributação proporcional nesse tipo de tributo gera um efeito regressivo, agravando a iniquidade do nosso sistema, já por demais injusto com os mais pobres, violando o princípio da capacidade contributiva.
Não se presta a salvar a validade constitucional da proposta, a previsão para que a União institua impostos seletivos para desestimular o consumo de determinados bens, uma vez que tal autorização se relaciona à extrafiscalidade negativa associada aos bens nocivos ao consumidor. Em nenhuma medida é ideia relacionada à capacidade contributiva ou ao implemento de políticas públicas de estados e municípios.
Não há dúvida de que o combate à complexidade é um dado positivo da PEC 45/19. Mas o atingimento deste objetivo não pode se dar à custa do aumento da regressividade do nosso sistema tributário e da violação do regime federativo.
Deste modo, é louvável a unificação dos tributos federais sobre consumo, sem que haja prejuízos à seletividade, à seguridade social e ao federalismo fiscal. Afinal, são os estados e municípios os principais responsáveis pelo atendimento das necessidades básicas da população, como saúde, educação e segurança pública. Restringir a autonomia desses entes federativos é atingir a essa população de que mais depende da atuação estatal. E essa população sofreria ainda mais com o aumento da regressividade do sistema e com a desvinculação de recursos destinados constitucionalmente à seguridade social.
Assim, a reforma tributária proposta simplifica a vida das empresas, mas tem efeitos regressivos sobre o sistema tributário, penalizando os mais pobres, além de restringir a autonomia federativa de estados e municípios.
Melhor andaria o Congresso Nacional em aprovar uma reforma tributária que contribuísse para a redução das desigualdades sociais e inter-regionais. A proposta, embora tendo pontos positivos, como a tributação no destino sobre bens e serviços e a simplificação da gestão fiscal pelos contribuintes, vai em sentido contrário desses objetivos fundamentais da República, sendo inconstitucional.
[1] De acordo com a sua página na internet, o CCiF é um think tankindependente, que tem como objetivo contribuir para a simplificação do sistema tributário brasileiro e para o aprimoramento do modelo de gestão fiscal do país. É dirigido por Bernardo Appy, Eurico Diniz de Santi, Nelson Machado e Vanessa Canado, sendo financiado pelas seguintes empresas: Banco Itaú, Natura Cosméticos, Huawei do Brasil, Souza Cruz, Votorantim, Braskem, Vale, e Ambev. Consulta ao site http://ccif.com.br, acesso em 6 de abril de 2019.
[2] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários, p. 324-325.
[3] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário – Vol. II – Valores e Princípios Constitucionais Tributários, p. 321.
Revista Consultor Jurídico
Ricardo Lodi Ribeiro – advogado e professor adjunto de Direito Financeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).