A reforma tributária como proposta pela PEC 293/04, com a unificação de tributos, só vai sair do papel se partir de um grande pacto entre as três esferas do governo. Segundo o ministro do Superior Tribunal de Justiça Luiz Alberto Gurgel de Faria, o governo federal precisa dar garantias a estados e municípios quanto à arrecadação para que a unificação das cobranças possa ser implementada.

“É necessário ter um grande pacto sobre o governo federal, governo estadual e governo municipal para simplificar a tributação em cima do consumo, ter legislação federal única e clara, garantindo que os estados e municípios não percam a arrecadação. Esse pacto social é difícil de ser construído”, afirma o ministro, em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2019, que tem lançamento previsto para maio.

A proposta da emenda constitucional, que tramita há 15 anos no congresso, determina a extinção de oito tributos federais, um estadual e um municipal, que dariam lugar a dois tributos sobre bens e serviços, ambos na esfera federal. O texto precisa ser analisado pelo Plenário da Câmara dos Deputados para, então, seguir ao Senado.

O maior ganho, segundo o ministro, é a simplificação de um assunto que é classificado como “fonte interminável de recursos” no STJ. “Para o contribuinte fica uma loucura. A gente precisa trazer regras mais claras para que as pessoas tenham segurança jurídica”, avalia o magistrado, que ainda rechaça propostas de tirar do Judiciário a execução fiscal. Em sua avaliação, o processo judicial é uma garantia, ainda que a lei precise passar por atualização.

Contra o excesso de processos que chegam à corte — o STJ julgou, em 2018, mais de 500 mil —, Gurgel de Faria espera pela aprovação de outra PEC, a da Relevância, que aprimora os filtros recursais, e defende regulamentação com a definição de temas de relevância presumida. “Alguns falam de valor de alçada. Mas, mesmo que não alcance, alguns temas teriam uma relevância diante de aspectos sociais, jurídicos etc.”

Leia a entrevista:

ConJur — O governo Bolsonaro, desde a transição, incluiu um grupo de trabalho para tratar da reforma tributária, dando indícios de que ela pode realmente sair. O senhor acha que ela é urgente?

Gurgel de Faria —
 A reforma tributária é mencionada desde 1995. Quando a Constituição tinha sete anos, começou-se a falar em reforma tributária, porque o sistema era meio maluco pra ser cumprido. É necessária. Todo governo que entra fala em reforma, mas não tira do papel. Eu acho que o governo precisa trabalhar fortemente para a reforma. A gente precisa simplificar os tributos. 

ConJur — Simplificar como?

Gurgel de Faria — 
Se olharmos com relação ao consumo, tem cinco tributos diretos: no âmbito federal, o IPI; no estadual, o ICMS; no municipal, o ISS. E você tem mais dois federais em que a base de cálculo é faturamento, então terminam incidindo em cima do consumo: Cofins e PIS. Cinco tributos em três esferas. Para o contribuinte, fica uma loucura. A gente precisa trazer regras mais claras para que as pessoas tenham segurança jurídica. Quando o investidor coloca na planilha o tributo, fica sempre uma interrogação. O ICMS deve estar na base de cálculo do PIS e da Cofins? Hoje a gente pode responder isso porque o Supremo disse, mas durante muitos anos o empreendedor não tinha essa certeza. A gente precisa de reforma tributária. 

ConJur — A proposta que parece mais aceita é a da unificação dos tributos no Imposto sobre Valor Agregado (IVA). O senhor entende como uma possibilidade viável?

Gurgel de Faria —
 Na reforma que estava em tramitação, o IVA estava com nome de IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). Alguns criticam dizendo que é tributo antigo. Seja antigo ou novo, a gente tem que pensar numa nova forma de tributar o consumo, porque do jeito que está fica difícil para o empresário. A grande dificuldade de aprovar um IVA é: hoje em dia tem três esferas tributando, e pra você ter um IVA puro precisaria unificar como tributo federal, ter uma legislação só e repartir essa arrecadação. Estados e municípios receberiam sua parcela. Mas eles ficam com desconfiança, e eu não tiro a razão. 'Será que vou receber?' Eles perderiam autonomia de legislar sobre isso. 

ConJur — É preciso ter um entendimento mútuo sobre o que vai ser esse imposto.

Gurgel de Faria —
 É necessário ter um grande pacto sobre governo federal, governo estadual e governo municipal para simplificar a tributação em cima do consumo, ter legislação única federal clara, garantindo que os estados e municípios não percam a arrecadação. Esse pacto social é difícil de ser construído. Para a simplificação dos tributos, seria importante. 

ConJur — E se o governo não conseguir coordenar esse esforço?

Gurgel de Faria —
 Se esse sonho de conseguir concentrar esses tributos em um só não for possível — se não conseguir grande pacto —, que pelo menos a União, no que diz respeito aos seus tributos relacionados ao consumo, também tenha regras mais claras, porque hoje PIS e Cofins são grandes tributos que trazem mais insegurança e, portanto, mais questões para o Judiciário como um todo.

ConJur — Essa complicação é o principal fator a ser resolvido por uma eventual reforma tributária?

Gurgel de Faria —
 Veja que o empresário que atua nos 26 estados e no Distrito Federal vai ter que ter um setor de contabilidade e assistência jurídica muito forte, porque cada estado tem sua legislação de ICMS. Se envolver tributo municipal, dependendo, tem complicação. Quando simplificasse tudo isso, teria regras mais claras sem precisar aprender cada legislação de cada lugar. Seria legislação única que simplificaria o sistema. 

ConJur — A simplificação teria efeito também sobre a sonegação fiscal?

Gurgel de Faria —
 Acredito que sim, porque, a partir do momento que você tem regras mais claras e tem segurança jurídica, você passa a cumprir melhor seus deveres. Se há insegurança, há sonegação ou a procura pelo Judiciário. Às vezes espera que venha parcelamento — hoje em dia são muitas as leis que trazem parcelamentos tributários. Eu acho que isso com certeza ajudaria também a pagar de forma correta.

ConJur — Aliado a isso, especialistas apontam a necessidade de um novo marco legal para a execução fiscal. O senhor concorda?

Gurgel de Faria —
 Já houve, alguns anos atrás, propostas de até tirar do Judiciário uma parte do processo de execução fiscal, que ficaria no âmbito administrativo, mas essas propostas não foram adiante. Tinha proposta de que até a garantia da dívida pudesse ser feita extrajudicialmente. Acho que, até para garantia do jurisdicionado, é importante você ter um processo judicial. Mas é uma lei que precisa se modernizar. É uma lei de 1980, do milênio passado. Ela vem aos poucos sendo atualizada, mas já justificaria ter novo processo de execução fiscal, trazendo medidas novas que de repente estivessem mais adequadas aos tempos modernos.

ConJur — Processos que discutem questões relacionadas a servidores públicos também chegam em peso à 1ª Seção. Por que ocorre esse efeito de retroalimentação judicial em que o próprio estado gera ações contra si mesmo?

Gurgel de Faria — 
Os estados precisam ser mais cumpridores das leis que eles mesmos aprovam. Nessa grande quantidade de demanda que os servidores trazem, muitas vezes eles ganham porque os estados não cumprem o que está previsto na legislação. O estado garante o direito, mas depois tenta fazer uma regulamentação contrária à lei, o que não é possível. Eu brinco sempre que não tem um servidor aposentado que não tenha duas ou três questões na Justiça. É incrível como os aposentados são os primeiros a descobrir uma vantagem que não foi implantada. 

ConJur — Tem muito potencial de litigiosidade ainda, então.

Gurgel de Faria —
 A gente está completando 30 anos da Constituição. O Brasil saiu de um período em que as pessoas muitas vezes tinham direitos violados e não vinham para o Judiciário e entrou em outro momento, em que a procura à Justiça é superdimensionada. A gente precisa tentar calibrar isso. O Estado dizer: onde estou errando? De onde vêm tantas demandas? O Judiciário fica assoberbado. É preciso leis mais claras, sistemas tributário, administrativo e previdenciário com legislação mais clara para evitar tanto embate. 

ConJur — A PEC da Relevância que tramita no Legislativo procura aprimorar os filtros recursais em relação ao que chega ao STJ. Qual deve ser o papel da corte?

Gurgel de Faria —
 A gente tem que ter a noção de que o STJ está no âmbito de instância especial. Por isso, acho que é efetivamente importante a existência desses filtros, porque senão vira terceira instância, apenas um recurso a mais, e esse não é o papel que foi programado pela Constituição Federal. A PEC da Relevância, uma vez aprovada, vai ser importante para que o STJ possa assumir seu verdadeiro papel de uniformizar a interpretação da legislação federal no âmbito das questões efetivamente importante não só no aspecto econômico, mas social, jurídico.

ConJur — E quais devem ser os filtros?

Gurgel de Faria —
 Você pode ter uma causa que, economicamente, não seja de valor alto, mas que envolva questão social tão importante que o valor é inestimável. A PEC da Relevância precisa ser aprovada e, uma vez aprovada, quando da regulamentação — há previsão que venha uma lei para disciplinar —, a gente possa esmiuçar essas situações em que a relevância estaria até presumida, independentemente de estabelecer um valor de alçada. Alguns falam de valor de alçada. Mas, mesmo que não alcance, alguns temas teriam uma relevância diante de aspectos sociais, jurídicos etc.

ConJur — Nesse sentido, quanto do atual acervo, por exemplo, teria sido barrado por um filtro como esse?

Gurgel de Faria —
 Como não tem esse filtro da PEC, fica difícil dizer percentual. Poderia lhe dizer, seguramente, que 70% do que chega não deveria estar numa instância especial, seja em razão do valor, da matéria. A parte sempre quer recorrer. Já existe filtro nos tribunais de apelação, porque eles fazem juízo de admissibilidade. Mas a parte não se conforma, agrava, aquilo vem pra gente e temos que examinar. Às vezes você vê recurso que não tem o menor cabimento para estar aqui. E essa PEC teria esse propósito de diminuir. A ideia é que, a partir do momento que só chegam matérias relevantes, vai ter um número menor de processos e por óbvio também vai melhorando a qualidade da jurisdição. A qualidade é boa, mas, como instância especial, a gente tem que ter menos processo para se dedicar mais ainda aos casos de relevo, que tenha uma questão importante. Os parâmetros da PEC do que vai ser relevante serão fixados em lei, mas sem dúvida seria uma redução representativa, como aconteceu com o Supremo na ocasião da repercussão geral. O Supremo teve redução de 60% da distribuição lá. Seria mais ou menos isso em números aproximados.

ConJur — O STJ atingiu a marca de mil temas de recursos repetitivos julgados em dez anos desde a criação desse rito. O senhor acha que eles têm cumprido seu papel de uniformizar a jurisprudência?

Gurgel de Faria —
 Eu sou entusiasta do repetitivo. Precisamos, na instância especial, firmar precedentes para que isso traga unidade ao sistema, segurança jurídica, senão fica aquela jurisprudência loteria, a depender de onde cai. O que precisamos melhorar é ter números maiores de tema — são mil, mas há quanto tempo estamos julgando? Temos trabalhado para isso. E julgar mais rápido. Hoje, no regimento, a previsão é que no prazo máximo de um ano seja julgado. Se tem repetitivo que demora dois, três anos, isso até inquieta as partes. 

ConJur — Quais fatores causam essa demora?

Gurgel de Faria —
 Muitas vezes o relator leva o processo nesse prazo, mas, como a tese é importante, um colega pede vista. E o outro pede vista. Como temos o processo eletrônico, na hora que houver pedido de vista, a vista pode ser coletiva, especialmente nos processos de repetitivos. O colega que pediu vai votar primeiro e, eventualmente, outros que tinham dúvida já vão apresentar o voto. Não fica aquela sequência de pedidos de vista, porque isso termina atrasando o processo. Se a gente conseguir implantar a vista coletiva para todos os processos, isso vai ser importante para ter celeridade nas construções das teses e também para julgamentos outros. 

ConJur — O STJ muitas vezes é chamado a decidir casos que alteram ou influenciam política pública. Qual deve ser a abordagem do juiz em casos assim? 

Gurgel de Faria — 
O Supremo, por exemplo, vem procurando balizar bem. Você vê, de um lado, o princípio da reserva do possível. O Estado muitas vezes utiliza esse argumento: na realidade não tenho orçamento para isso. E também diz: 'isso é discricionário, eu vou adotar ou não'. Fica a critério do administrador escolher o que é o mais importante para a população. Muitas vezes o Judiciário se depara com situações em que há o comando constitucional para que a política pública seja respeitada, seja implantada, e há inércia. A gente vem procurando fazer isso, de balizar para que a atuação seja dentro do necessário. É importante que o Judiciário esteja atento. Não para sentar na cadeira do Executivo, do gestor, mas quando for omissão gritante, de atuar. Muitas vezes, a partir de decisões do Judiciário, o Legislativo e o Executivo tomam a iniciativa. 

Por Danilo Vital – repórter da revista Consultor Jurídico