A Lei 13.874/2020, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelece garantias de livre mercado, consagra entre outros os princípios da “liberdade como garantia no exercício de atividades econômicas”, da “boa-fé do particular perante o poder público” e do “reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado” (artigo 2º, incisos I, II e IV).
Erige ainda em direitos de toda pessoa natural ou jurídica: “Definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda”; e “gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário” (artigo 3º, incisos III e V).
O entusiasmo do tributarista perante esses dispositivos — que noutras plagas passariam por tautológicos, mas aqui são nada menos do que revolucionários — é logo contido pelo parágrafo 3º do artigo 1º, que os declara inaplicáveis ao Direito Tributário.
A relação da Lei de Liberdade Econômica com o nosso ramo não é, contudo, tão linear. Primeiro porque, traindo uma vocação quase natural à própria eficácia no campo tributário, ela cuida de afastar os efeitos fiscais de comandos que, face à regra geral de inaplicabilidade há pouco referida, já não os teriam. É o que faz o parágrafo 3º, inciso I, do artigo 3º, que excepciona o direito à livre definição do preço vazada no inciso III do mesmo artigo quando aquele “seja utilizado com a finalidade de reduzir o valor do tributo, de postergar a sua arrecadação ou de remeter lucros em forma de custos ao exterior”. E também o parágrafo 6º, inciso I, do artigo 3º, que exclui os requerimentos fiscais da regra de aprovação tácita por decurso de prazo posta pelo inciso IX do mesmo artigo.
Segundo e principalmente porque, sendo o tributário um direito de sobreposição — no sentido de que frequentemente as suas normas incidem sobre institutos disciplinados em outros ramos do ordenamento (“serviço público específico e divisível” para as taxas é noção importada do Direito Administrativo; “heranças e doações” para o ITCMD são termos hauridos do Direito Civil etc.) —, é comum que as disputas fiscais sejam resolvidas a partir do Juízo de subsunção do fato tributável ao conceito veiculado no ramo jurídico de origem (o que não é herança para fins civis não se sujeita ao imposto estadual [1]) ou da validade, à luz do ramo jurídico de origem, dos atos praticados pelo particular.
Exemplo dessa última situação dá-se com o planejamento tributário. Se o fato gerador não se verificou, a imposição do dever fiscal só poderia fazer-se — sendo certo que estamos no campo da licitude — por analogia fundada em norma geral antielisiva que tornasse inoponíveis ao Fisco as estruturas jurídicas adotadas com o fim único de economizar tributos. Ocorre que tal norma não existe entre nós, e seria inconstitucional se existisse. Como lembra Gilberto de Ulhôa Canto, homenageado no congresso da ABDF de 2020, “é claro que a realidade econômica se apresente como pressuposto lógico relevante dos tributos, mas só é presente na obrigação tributária se tiver sido juridicizado pela lei, dado o princípio da legalidade [2]“.
Isso o que o STF está a reiterar na ADI 2.446, que predica a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN sob a premissa de que veicularia norma geral antielisiva. Em notável voto, alinhado à melhor doutrina tributária [3] e seguido até agora pelos ministros Marco Aurélio, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, a ministra Cármen Lúcia afasta essa qualificação, descrevendo o comando como típica norma antievasiva e, nesse contexto, declarando a sua perfeita validade. No dizer da relatora, “a norma não proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada”.
Para suprir a inexistência de uma norma geral antielisiva no Brasil, os defensores da interpretação econômica do Direito Tributário têm apelado aos mais variados institutos jurídicos: fraude à lei, abuso de direito, abuso de formas, ato anormal de gestão, business purpose test…
Consiste a fraude à lei, prevista no artigo 166, inciso IV, do Código Civil, na prática de atos aparentemente lícitos com o fim de driblar proibição ou imposição veiculadas em lei imperativa (divórcio para burlar a vedação de doação entre cônjuges, seguido de novo casamento). Ora, a norma tributária não é imperativa, mas condicional: o pagamento é obrigatório, uma vez ocorrido o fato gerador, mas a prática deste é facultativa, em especial quanto aos impostos. Bem por isso, já em 1958 Homero Prates advertia contra os “intérpretes apressados, inclusive juízes e tribunais”, que “continuam a confundir lamentavelmente os atos propriamente simulados, em prejuízo de terceiros ou em fraude da lei e regulamentos, de caráter fiscal, do Direito Tributário, com os atos in fraudem legis — que constituem violações agravadas de normas obrigatórias ou proibitivas, de ordem pública [4]“.
O abuso de direito, disciplinado no artigo 187 do Código Civil, ocorre quando o destinatário atende à letra da lei, mas “excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (recusa arbitrária de autorização para o casamento, para seguirmos no Direito de Família). E qual seria o direito objeto de abuso? Para os advogados desta tese, o direito de livre organização dos negócios do particular, pois a adoção de formas inusuais atenderia ao único objetivo de economizar tributo. Ora, a nosso ver, a busca de redução fiscal lícita — todas estas teorias assentam nessa premissa, sem a qual o caso seria de evasão, admitindo solução singela — antes realiza do que contraria o direito de livre disposição dos próprios bens, que se volta à maximização dos ganhos, certo como é que não existe um dever legal de opção pelas vias mais onerosas.
Sobre o abuso de formas, recorremos mais uma vez a Gilberto de Ulhôa Canto: “Se as formas são de Direito privado e elas não são legitimadas pelas normas desse ramo do Direito, então estaremos diante de um caso comum de ilegalidade ou nulidade, pura e simples”. Mas, segue, “se face ao Direito privado tais formas são legítimas, não vemos como se possa acusar alguém de estar cometendo abuso dessas formas apenas para efeitos fiscais [5]“.
Como se vê, tais institutos interferem no nível da validade ou da eficácia dos atos privados subjacentes à incidência tributária — a qual só de maneira indireta é por eles pretensamente confirmada (inoponibilidade ao Fisco do esquema negocial adotado pelo contribuinte). Noutras palavras: embora o intuito de sua invocação seja tributar, o debate neles fundado se processa no âmbito do Direito privado, e não do Direito Tributário. Bem por isso, as objeções a eles contrapostas são decerto reforçadas pelos princípios e direitos enunciados na Lei 13.874/2020 (liberdade econômica; presunção de boa-fé do particular; primado da autonomia da vontade na solução de dúvidas quanto à aplicação do Direito Civil e Empresarial; e reconhecimento da hipossuficiência do particular perante o Estado), malgrado a sua declarada estraneidade ao campo fiscal.
Agradeço ao amigo Fábio Artigas Grillo a provocação para refletir sobre o tema.
Esta é a minha última coluna do ano. Boas festas a todos e que 2021 seja melhor!