Como se o nível da nossa carga tributária ainda pudesse comportar algum aumento, espanta constatar que a assessoria econômica de ambos os candidatos à Presidência da República, no segundo turno, bem como alguns projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional (PLs 588/15, 616/15, 639/15, 9.636/18, entre outros), proponham a revogação da isenção do Imposto sobre a Renda (IR) dos lucros e dividendos distribuídos pelas pessoas jurídicas a seus sócios, criada pela Lei 9.249/95.
Essa pretensão não é nova. Dez anos atrás, tive a oportunidade de comentar, em um artigo publicado no jornal Valor Econômico (“A tributação sobre a distribuição de lucros”, em 22/07/2008), o Projeto de Lei 3.007/08, de autoria do deputado Chico Alencar (PSOL/RJ), que já propunha essa mesma revogação, seguindo a mesma linha de outras propostas anteriores.
A justificativa do projeto era no sentido de que “a evidente existência de capacidade contributiva” demonstrada por quem recebe esses valores não poderia permanecer desonerada. A revogação da isenção pretendida, expunha a referida “justificativa”, teria “o cunho de ampliar o grau de justiça fiscal do sistema, estabelecendo tratamento isonômico para todos os contribuintes, fossem eles assalariados ou detentores de participação acionária”.
Os argumentos que fundamentam as propostas atuais seguem o mesmo racional e são igualmente improcedentes.
No mundo, enquanto alguns países simplesmente deixam de tributar a renda na pessoa jurídica, fazendo-o apenas nas mãos dos acionistas, outros a tributam apenas na pessoa jurídica, isentando os dividendos; e outros, ainda, tributam a renda na pessoa jurídica e na pessoa do sócio, mas com a adoção de mecanismos que propiciam melhor equalização das incidências e uma carga tributária não extorsiva.
Como bem lembra Ian Muniz, em artigo publicado no jornal Valor Econômico (“Tributação de dividendos”, em 17/10/18), um dos painéis do congresso da International Fiscal Association deste ano, na Coreia, tratou do tema “Tendências Recentes na Tributação de Distribuição pelas Empresas”. Após os debates, constatou-se que países que tributam a renda na pessoa jurídica e na pessoa do sócio examinavam a possibilidade de deixar de tributar a distribuição de dividendos. Argumentava-se que essa tributação não deveria se dissociar do tributo que recai sobre a renda da própria empresa geradora dos lucros (no caso brasileiro, IR e CSL). Haveria que se verificar o ônus tributário sobre o fluxo de formação do lucro, desde a sua produção, na pessoa jurídica, até a sua distribuição aos acionistas.
De fato, economicamente, trata-se da circulação de valor da mesma natureza (lucro), que tem o início da sua formação na empresa e o seu término no momento em que os respectivos dividendos chegam às mãos dos sócios. É o mesmo valor que circula em um mesmo ciclo, dividido em de duas etapas.
Esse pensamento está em linha com o que dispõe a exposição de motivos da Lei 9.249/95, segundo a qual o que se pretendeu com a criação da isenção em exame foi estabelecer “a completa integração entre a pessoa física e a pessoa jurídica, tributando-se esses rendimentos exclusivamente na empresa e isentando-os quando do recebimento pelos beneficiários”.
Ainda de acordo com a referida exposição de motivos, o que se objetivava com a criação da norma isentiva era “além de simplificar os controles e inibir a evasão, estimular o investimento nas atividades produtivas”, inclusive, e principalmente, o proveniente do exterior.
Como se vê, jamais se pretendeu, com a isenção que se quer revogar, estabelecer qualquer incentivo que buscasse privilegiar quem quer que fosse. O que se pretendia era, além de evitar a bitributação de valores que pertencem ao mesmo ciclo, simplificar a complexa e burocrática rotina com que convivem os contribuintes brasileiros (de forma a trazer para a formalidade aqueles que se mantinham à margem dela), evitar planejamentos fiscais abusivos promovidos com o objetivo de escapar da tributação dos dividendos e, principalmente, estimular novos investimentos por meio da desobstrução de lucros que, em decorrência da tributação que a sua distribuição sofria, eram retidos pelas empresas.
De fato, era – e continua sendo – de absoluta relevância para a economia nacional a simplificação dos regimes tributários aplicáveis a quem pretenda sair da informalidade – ou manter-se formal – para poder utilizar-se de instrumentos propiciadores da formalização das suas relações com terceiros (fornecedores, empregados etc). A dupla oneração do lucro, na pessoa jurídica e na pessoa dos seus acionistas, é um grave empecilho ao alcance desses objetivos e propicia iniciativas que vão em direção oposta.
Quanto ao estímulo ao investimento em atividades produtivas, a manutenção da tributação intensa do lucro na sua formação (34%, para as empresas que sejam tributadas com base no lucro real) e da isenção na distribuição, além de assegurar a arrecadação nos níveis desejados pela Fazenda, tornam injustificável e desnecessário que pessoas jurídicas retenham ou posterguem o pagamento de dividendos (lock-in effect). Consequentemente, os acionistas passam a ter maior discricionariedade e disponibilidade de recursos para fazer reinvestimentos ou investimentos em novos negócios. Com essa desoneração e consequente desobstrução da distribuição de lucros por parte das empresas, há maior circulação de riquezas na econômica, com todas as vantagens daí decorrentes.
Outro objetivo da criação da regra isentiva, como visto na própria exposição de motivos, era o de evitar planejamentos fiscais dos quais resultassem distorções no próprio pagamento dos dividendos (distribuição disfarçada de lucros, por exemplo).
Nessa linha, criou-se, na mesma lei, o regime de JCP – dedutibilidade dos juros sobre capital próprio – com o objetivo de evitar que as vantagens tributárias decorrentes da dedutibilidade dos juros pagos em empréstimos contraídos com terceiros pudessem influenciar, de forma perniciosa, a escolha da forma de financiamento da empresa. Com efeito, antes da adoção desse regime, a contração de empréstimos era mais vantajosa quando comparada com investimentos em capital realizados por acionistas, porque os valores pagos àquele título eram dedutíveis, enquanto os relativos a dividendos distribuídos, não. Desse consequente aumento do grau de endividamento das empresas advinham todos os efeitos maléficos que lhe eram próprios (a inadimplência em períodos de crise encabeçava a lista).
Com essas medidas (isenção do IR na distribuição de lucros e a criação da JCP), buscou-se contornar as principais distorções econômicas então existentes, relacionadas à forma como era tributada a distribuição de lucros.
É falacioso o argumento de que a proposta de revogação da isenção teria o condão de propiciar maior justiça fiscal, tendo em vista o tratamento tributário isonômico que passaria a ser dado aos contribuintes, fossem eles investidores ou assalariados.
De fato, o sistema jurídico vigente estabelece normas que sujeitam os rendimentos provenientes do trabalho e do capital a cargas tributárias bastante semelhantes, senão mais gravosas para o capital. O lucro distribuído ao sócio ou ao acionista é antecipada e pesadamente tributado na pessoa jurídica que o aufere e, diversamente do que ocorre com a remuneração paga a empregados, não gera qualquer valor a ser deduzido na apuração dos resultados tributáveis da empresa.
Em se tratando de receita derivada do trabalho, o seu montante integral representa um acréscimo patrimonial para o contribuinte, que é tributado na fonte por meio da aplicação de alíquotas progressivas de 7,5% a 27,5% sobre a base de cálculo apurada mediante a concessão de abatimentos e deduções relativos aos gastos incorridos pelo contribuinte. Para evitar bitributação, o valor retido na fonte é deduzido para fins de apuração da base de cálculo do IR devido pelo empregado. Com o mesmo objetivo, também é dedutível da base de cálculo do IRPJ devido pela empresa empregadora o valor da remuneração paga à pessoa física.
Já na receita derivada de investimentos em pessoas jurídicas, o seu montante já é desfalcado na própria geração da receita da qual decorre o lucro, mediante a incidência de diversos impostos indiretos (entre os quais o IPI, o ICMS ou o ISS, conforme o caso), cujas alíquotas variam, em média, de 5% a 25%, e de contribuições sociais (PIS e Cofins), que, na forma não cumulativa, incidem à alíquota de 1,65% e 7,6%, todos incidentes sobre o faturamento da empresa. Ou seja, incidem independentemente de as receitas auferidas serem inferiores aos custos necessários à sua formação e, consequentemente, de haver acréscimo patrimonial, lucro.
Se houver esse acréscimo, ele ainda se sujeitará, na pessoa jurídica, à incidência de Imposto de Renda mediante a aplicação de duas alíquotas progressivas que variam de 15% a 25%, e, ainda, à incidência da contribuição social sobre o lucro (CSL) à alíquota de 9%.
Note-se, ainda, que, como bem salienta Fernando Facury Scaff, em excelente artigo intitulado “A miopia na tributação dos dividendos” (publicado no jornal Valor Econômico, em 22/08/18), a carga tributária que pesava sobre a nossa economia em 1994 era de 25% do PIB, e, hoje, gira em torno de 33%, oito pontos percentuais maior. A União arrecadava 19% do PIB e, hoje, arrecada 24% desse valor. A carga tributária é, portanto, substancialmente maior do que aquela existente quando da criação da isenção sobre a distribuição de dividendos.
Em relação às sociedades profissionais, compostas por médicos, dentistas, advogados, engenheiros etc., a revogação da isenção sobre a distribuição de dividendos causará efeitos ainda mais drásticos, tendo em vista que toda a renda por elas produzida deriva do trabalho pessoal dos sócios.
Essa renda nada mais é do que o somatório da produção de cada sócio. Logo, tributar o resultado da sociedade profissional e depois tributar os valores distribuídos aos sócios significa, na prática, tributar duplamente a mesma renda, promovendo-se, aí sim, profunda injustiça fiscal.
Como bem aponta Everardo Maciel, em lúcido artigo sobre o tema (“Impostos em tempos de eleição”, publicado no Diário do Comércio, em 06/09/18), dizer que a isenção na distribuição de dividendos configura vantagem indevida aos sócios investidores equivale a afirmar que, ao receber a restituição do IR, o trabalhador está recebendo subsídios indevidos, quando, na verdade, o que ocorre é que ele foi tributado a maior na fonte. Da mesma forma, na distribuição dos lucros ao acionista, os valores pagos já terão sofrido forte tributação quando da sua formação na pessoa jurídica, conforme demonstrado.
Como assevera, ainda, o ex-secretário da Receita Federal, “a isenção na distribuição dos resultados, com tributação exclusiva no lucro, reúne muitas vantagens. É mais simples, tanto para o contribuinte quanto para o fisco, justamente porque é uma tributação exclusiva na fonte, como aliás preferem os brasileiros. É neutra em relação aos regimes de tributação das empresas (lucro real, lucro presumido e simples). Flexibiliza a alocação de investimentos, porque propicia ao investidor ampla liberdade de escolha. É menos vulnerável à evasão fiscal, porque torna sem sentido a distribuição disfarçada de lucros, fenômeno de difícil controle e presente em muitos países”.
Também não procede o argumento, comumente utilizado, de que, em razão da isenção que se pretende extinguir, a arrecadação acaba por ser prejudicada pela má utilização de pessoas jurídicas por contribuintes – a denominada pejotização.
Tem-se que ter em mente que, se as regras de tributação forem concebidas a partir da premissa de que os contribuintes logram escapar da tributação mediante a adoção práticas evasivas, os que se abstiverem de adotá-las acabarão sendo, na verdade, prejudicados. Se há algo de errado com a referida pejotização, que o fisco se debruce sobre a questão e procure resolver o problema de forma específica.
Não se pode legislar com os olhos voltados para a exceção e a patologia, sob pena de penalizar-se toda a coletividade em decorrência do comportamento de poucos.
Por fim, repare o leitor que todas as minhas considerações acima se mantêm mesmo que, aliada à revogação da isenção em exame, proponha-se a diminuição da alíquota do IRPJ incidente sobre os lucros, na pessoa jurídica.
E, para justificar a minha posição, socorro-me de outro trecho do artigo de Everardo Maciel, acima mencionado, cuja lógica é inatacável: “Admitamos que se proceda à redução da alíquota nominal com consequente tributação dos dividendos. Se resultar em tributação maior, haverá aumento da já elevada carga tributária, com inevitável reação dos contribuintes; se menor, implicará perda de arrecadação em um quadro de crise fiscal; se igual, cabe indagar qual a razão para adotar tal medida se dela resultam maior complexidade e aumento da carga tributária para 10 milhões de sócios das 4 milhões de empresas optantes do Simples e 850 mil do Lucro presumido. Há quem não tolere a simplicidade.”
Em conclusão, seria importante que, nesse momento em que se discutem propostas abrangentes de reforma tributária, que verdadeiramente alteram – para melhor ou para pior – o nosso sistema tributário nacional, os candidatos à Presidência e os nossos congressistas se concentrassem em evitar que delas pudesse surgir um cenário ainda mais tenebroso do que aquele em que já vive o contribuinte brasileiro, e não contribuíssem com esse resultado por meio da propositura da revogação de regras que, na verdade, consertaram erros do passado.
Que o foco deles seja o de buscar a simplicidade das regras fiscais, o estímulo à formalização da economia, a baixa carga tributária, a segurança jurídica, o incentivo ao investimento na nossa combalida economia e, por fim, o mais importante, a criação de mecanismos que imponham a diminuição dos gastos públicos, esses, sim, os verdadeiros vilões da situação fiscal em que o país se encontra.
Gustavo Brigagão – sócio do escritório Brigagão, Duque Estrada, Emery – Advogados; presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association (IFA); presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ); conselheiro da OAB-RJ; diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.
Fonte: Consultor Jurídico