Por João Otávio Martins Pimentel
Depois de meses atípicos, com o mundo de cabeça para baixo em razão da Covid-19, a reforma tributária voltou à pauta política brasileira. O tema não é novo: na verdade, a reforma é vista como necessária há bastante tempo, e a complexidade do sistema tributário brasileiro é consenso, com deletérios efeitos à competitividade econômica do país.
As principais propostas que estão sendo discutidas na Câmara e no Senado visam à simplificação e à unificação de alguns tributos. Medidas positivas, mas isoladas, não são verdadeira reforma tributária. São, no máximo, reformas de tributos indiretos. Reformar o sistema tributário pressupõe ir além da unificação de alguns tributos, exige refletir sobre as premissas e distribuição da tributação. Chama a atenção que as principais propostas não abranjam a tributação da renda, tanto corporativa quanto da pessoa física, que não podem ser ignoradas por uma verdadeira reforma tributária.
O Poder Executivo é bastante tímido no tema. Depois de promessas sobre uma proposta ampla, apresentou uma proposta de unificação do PIS e da Cofins na nova CBS, com imediata majoração de alíquotas e aumento de carga tributária para o setor de serviços. Não obstante, o Ministério da Economia indica que sua reforma tributária terá como importante pilar a tributação das transações financeiras — fórmula que agrada ao Fisco por contornar focos de sonegação, mas tem poucos cases de sucesso no mundo (sob a ótica econômica, pois é uma máquina de arrecadação e, por isso, objeto de desejo da Receita Federal).
No entanto, ao tratar de reforma tributária, não se tem discutido graves gargalos que o país enfrenta na área.
Não se coloca em debate, seriamente, a tributação da renda. Limites de isenção de despesas médicas ou de instrução não são questões elementares. O país continuará a centrar sua arrecadação no consumo? Ou tratará de forma mais moderna e justa a tributação da renda — não apenas da pessoa física, como também a corporativa? Tributar dividendos, de per si, também não resolverá: deve-se fazer uma discussão honesta sobre o quanto a renda deve ser tributada para tornar o sistema menos regressivo e desigual. Justiça fiscal não pode ser ignorada nesse debate.
O Ministério da Economia acaba de dar mais uma contribuição ao que outrora foi chamado manicômio tributário: editou portaria que, supostamente interpretando o artigo 28 da Lei nº 13.988, que extinguiu (será mesmo?) o voto de qualidade no Carf, acabou por limitar a eficácia do dispositivo aos autos de infração. A justificativa é risível: os demais processos não seriam de constituição de crédito tributário, embora tenham, precisamente, tal finalidade. Sem entrar no mérito da legitimidade do voto de qualidade, tem-se grande contribuição dos liberais da Economia para a balbúrdia tributária. O contencioso administrativo, é de se lembrar, não está sendo considerado nas discussões sobre reforma tributária, apesar de ter relevância ímpar para o bom funcionamento de um sistema tributário. Não há dúvidas de que a portaria trará mais instabilidade ao Carf e será questionada em diversas frentes de batalha no Poder Judiciário, se não vingar o projeto de decreto legislativo já aventado na Câmara dos Deputados.
Com isso já se mostra uma questão necessária a constar na reforma tributária: que o Executivo e os órgãos arrecadadores em geral não permaneçam, sob o pretexto de interpretar, descumprindo leis e restringindo o alcance de decisões judiciais tomadas no afã de dirimir conflitos entre Fiscos e contribuintes. Exemplos não faltam de restrições colocadas a partir de interpretações restritivas, sendo marcante o caso da exclusão do ICMS das bases de cálculo do PIS/Cofins — mitigada por solução de consulta, e o da constitucionalidade de restituição do ICMS cobrado a maior por substituição tributária, que levou o Estado de Pernambuco a ser criativo e “interpretar” que a decisão permitiria, então, tributar as operações realizadas em montante maior que o presumido, mesmo havendo expressa dispensa de tal cobrança na lei estadual.
Unificar PIS e Cofins, certamente, será bem-vindo, mas, da forma como colocada, nivelará por cima, onerando o consumo. Hoje, é fato, essas contribuições se ramificam em vários modelos, exceções e trazem uma grande dificuldade em saber quando é possível o aproveitamento de crédito. Precisam de mudanças. Não é mais possível admitir que os tributos não cumulativos tenham, cada um, seu universo particular, pois a disciplina do direito ao crédito de PIS/Cofins (que se tornarão CBS, caso aprovada a proposta do governo federal), IPI e ICMS é intricada e apresenta critérios dissonantes. A tributação previdenciária, com a coexistência de vários modelos, fatores e declarações (e quantas são!), também é caótica.
Há ainda mais de que não se fala: as multas tributárias cobradas no Brasil. Fiquemos na esfera federal. O mero atraso no pagamento do tributo por 60 dias ou mais enseja uma multa de mora de 20% sobre o valor do débito. A isso, acrescem-se juros. Quando o procedimento é de ofício, isto é, a Receita Federal fiscaliza, para depois lançar, a cobrança é adicionada de 75% (sim, 75%!) em razão de ter sido necessária uma atuação do órgão arrecadador. Se houver fraude envolvida, o montante salta para 150%. Há vezes em que ainda é cobrada uma multa, dita “isolada”, de mais 50%, fazendo com que até 225% do valor que seria devido seja adicionado ao montante reputado devido, além dos juros. Duplicar ou triplicar uma dívida pode ser uma boa razão para explicar as razões de sua inadimplência e do grande estoque de dívida ativa do país.
O que falar, então, da multa de 50% aplicada quando do indeferimento de um pedido de compensação? Funciona assim: caso o contribuinte informe que tem um crédito, mas a Receita Federa não o reconheça de pronto, pode-se esperar a cobrança adicional de metade do valor da dívida, somente por isso. Grave excesso consta na multa de até 1% sobre a receita bruta do ano anterior, para quem atrasar a entrega da Escrituração Contábil Digital (ECD). Sim: reserve 1% do que a empresa receber no ano anterior, se deixar de apresentar no prazo a escrituração Contábil na data. Como explicar isso a um investidor estrangeiro?
A régua utilizada para tratar das penalidades parece ser, sempre, a do devedor contumaz. Essas regras, porém, acabam tornando o sistema mais inóspito para quem descumpre obrigações pontualmente, às vezes sem sequer se dar conta disso, ou mesmo para quem tem boas razões para litigar com o Fisco. Os reais devedores contumazes, que fazem da sonegação um pilar do negócio, esses conseguem passar ao largo dos controles. Ainda não se conseguiu, no país, instituir um mecanismo eficiente que coíba a atividade dos que têm na sonegação fiscal um pilar do seu negócio.
Muito pouco, quase nada disso, está sendo tratado nas propostas de reforma tributária que vêm sendo discutidas pelo Congresso, embora tais questões afetem, com intensidade, o cotidiano das empresas, os custos de conformidade dos contribuintes e aquilo que tanto se almeja: previsibilidade, confiança e segurança jurídica. Urge incluir esses pontos na pauta da reforma tributária.