Este texto é resultado de frutíferas discussões ocorridas em seminário promovido pelo Centro Acadêmico Hugo Simas da Universidade Federal do Paraná, onde leciono, e em Talk Show organizado pela CESA-PR, do qual participaram também os Professores Egon Bockman Moreira e Rodrigo Xavier Leonardo. Ambos os eventos versaram sobre a MP 881/2019, conhecida como “Medida Provisória da Liberdade de Atividade Econômica”, que, segundo estabelece o caput do seu artigo 1º, buscou introduzir declaração de direitos inerentes ao livre exercício da atividade econômica, ao assegurar a livre iniciativa e os direitos dela decorrentes.

Trata-se de providência de índole legislativa que busca conferir maior efetividade ao princípio constitucional inserto no artigo 170 da Constituição Federal. Embora não se possa questionar seu mérito e utilidade, diante do seu propósito de incremento do desenvolvimento econômico, pensamos que a referida norma é de todo despicienda pois o princípio da liberdade da atividade econômica, assim como os demais princípios constitucionais, tem eficácia plena e aplicabilidade imediata, e, portanto, dispensa lei integrativa.

Aliás, a edição de normas tendentes a conferir eficácia a princípios constitucionais é, lamentavelmente, usual no Brasil. São incontáveis as leis e normas infra legais cujo propósito é fazer valer tais princípios. Pensamos que a reprodução em textos normativos de regras e princípios constitucionais, dotados de eficácia plena e aplicabilidade imediata, é absolutamente reprovável pois, a par de impor elevados custos à maquina estatal, é elemento de desvalorização do texto constitucional.

No que concerne à liberdade de atividade econômica, a única norma constitucional que depende de integração por lei é a que prevê o abuso do poder econômico, com o objetivo da dominação dos mercados, eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros, conforme disposto no artigo 173, §4º da Constituição Federal.

De qualquer forma, a despeito da questionável necessidade da referida MP, analisaremos brevemente a sua aplicação ao direito tributário.

O artigo 1º, § 1º prevê que a sua interpretação e aplicação alcança apenas o direito civil, o direito empresarial, o direito econômico, o direito urbanístico e o direito do trabalho.

O § 2º do mesmo artigo ressalva, no entanto, a sua aplicação ao direito tributário, à exceção da possibilidade de arquivamento de documentos fiscais microfilmados ou digitalizados, desde que observada a técnica adequada a ser estabelecida em regulamentação.

Na realidade, tal previsão é mera reprodução do disposto na Lei nº 12.682/2012 – a “Lei da Digitalização”–, que autoriza a destruição de documentos físicos após a sua digitalização, desde que comprovada a integridade do documento original e a autenticação por certificação digital emitida pela infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras-ICP. Tal lei também permite a eliminação do documento digital após o transcurso dos prazos decadencial e prescricional.

Cremos que não andou bem o legislador ao afastar a aplicação da MP do direito tributário, porquanto nenhum fator pode restringir de forma mais severa a liberdade de atividade econômica do que a sujeição ao pagamento de tributos. Na dicção de John Marshall, juiz da Suprema Corte dos EUA, no caso Mc Culloch v. Maryland, o “poder de tributar equivale ao poder de destruir”, ou seja, assim como pode incentivar fortemente a atividade econômica, a tributação pode igualmente aniquilá-la.

Ainda, o artigo 3º, inciso III da MP 881/2019 veda que as autoridades imponham restrições à livre fixação de preços de produtos e serviços, exceto quando o particular pretender reduzir ou postergar o pagamento de tributos, ou ainda remeter lucros em forma de custos para o exterior (artigo 3º, §4º, inciso I).

Tal previsão harmoniza-se com o princípio da neutralidade fiscal, que proíbe que a cobrança de tributos promova distorções de preços e seja motivo para alocação de investimentos. Para neutralizar e corrigir tais situações, a Constituição Federal contempla o disposto no artigo 146-A, incluído pela E/C 42/2003, que autoriza a União a editar Lei Complementar para estabelecer critérios especiais de tributação, visando prevenir desequilíbrios concorrenciais.

Observe-se que embora o legislador tenha ressalvado a aplicação da MP em relação ao direito tributário, contemplou “cá e lá” regras a ele aplicáveis. A previsão relativa à fixação de preços, por exemplo, deflui do disposto no artigo 2º que estabelece o princípio da presunção de boa-fé do particular, cuja aplicação ao direito tributário é inquestionável, haja vista a premissa da boa fé do contribuinte é inerente à cidadania fiscal.

Ao final, a referida MP alterou várias leis federais, entre elas o Código Civil em seu artigo 50. A redação em vigor estabelece que em casos de abuso da personalidade por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, poderá haver a desconsideração da personalidade jurídica para que determinadas obrigações possam ser estendidas aos bens particulares de administradores e sócios beneficiados, direta ou indiretamente, pelo abuso.

Destaque-se que na redação original não estava prevista expressamente a desconsideração da personalidade jurídica, nem a sua aplicação apenas aos administradores e sócios beneficiados pelo abuso, o que havia era uma regra da qual se deduzia que era possível a desconsideração da personalidade jurídica.

A nova regra define ainda o desvio de finalidade como a utilização dolosa da pessoa jurídica, que abarca tanto prática de atos ilícitos como o propósito de lesar credores. Tal regra também se aplica ao direito tributário, na medida em que a Fazenda Pública, na condição de credora, pode ser lesada intencionalmente pelo contribuinte.

Nesse contexto, merece destaque a previsão do § 4º do artigo 7º da MP 881/2019, que estabelece que “A mera existência de grupo econômico, sem a presença dos requisitos de que trata o caput, não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica”.

As regras em questão podem, portanto, ser aplicadas à desconsideração de personalidade jurídica em matéria tributária em razão de constituição de grupos econômicos que não se amoldem às hipóteses contempladas na Lei das S/A, ou seja, quando tais estruturas sejam artificiosas e tenham o propósito exclusivo de reduzir ou postergar o pagamento de tributos. A nova regra não se aplica, no entanto, à responsabilidade tributária do sócio-gerente e do administrador, prevista no artigo 135 do CTN, já que esta é uma situação de responsabilidade por transferência e não uma hipótese de desconsideração de personalidade jurídica.

Para fins tributários, os grupos econômicos foram definidos no art. 494 da IN RFB nº 971/2009 e, recentemente, no Parecer Normativo COSIT/RFB 04/12/2018 foram delimitadas as hipóteses de solidariedade – conforme disposto no artigo 121 do CTN – e de desconsideração da personalidade jurídica.

Ainda, a Lei nº 10.522/2002 que dispõe sobre o Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais também foi alterada pela MP 881/2019. Entre as modificações nela promovidas está a previsão da constituição de Comitê formado por integrantes do CARF, da RFB, do Ministério da Economia e da PGFN, para edição de súmulas.

Tal regra merece críticas pois, ao alterar a sistemática atual de edição de súmulas pelo Carf, subtrai a participação de representantes da sociedade civil na sua elaboração, como vinha acontecendo até agora.

Finalmente, foram introduzidas regras que dispensam a RFB de constituir créditos tributários e a PGFN de inscrevê-los em dívida ativa. Foram ampliadas as hipóteses em que a PGFN fica dispensada de contestar, oferecer contrarrazões e de interpor ou de desistir de recursos (art. 19 da Lei nº 10.522/2002).

Ainda, autorizou-se a PGFN a realizar negócios jurídicos processuais, dispensando a prática de atos e autorizando a desistência de recursos interpostos, quando o benefício patrimonial almejado com o ato não atender aos critérios de racionalidade, de economicidade e de eficiência.

 

Por Betina Treiger Grupenmacher

Revista Consultor Jurídico