Para ex-secretário da Receita, IVA com alíquota única e fim de deduções no IR sobrecarregaria classe média
Everardo Maciel, ex-secretário da Receita: “As piores distorções que existem em matéria tributária são sonegação e planejamento tributário abusivo” — Foto: Silvia Zamboni/Valor
Existe hoje uma “passarela de propostas” de reforma tributária que não tratam dos verdadeiros problemas do sistema de impostos do país, avalia Everardo Maciel. Ex-secretário da Receita Federal e titular da Logos Consultoria, Everardo não é a favor de nenhum dos principais projetos em debate. Para ele, é um erro reunir os tributos sobre consumo num Imposto sobre Valor Agregado (IVA). Com alíquota única, o tributo deve atingir a classe média “de uma forma mortal”. Aliada a eventuais restrições em deduções de despesas de saúde no Imposto de Renda das Pessoas Físicas, a criação do IVA resultaria em uma “tempestade perfeita da sonegação”, diz Everardo.
A criação de um IVA é a base da PEC 110 e da PEC 45, as principais propostas de reforma tributária em andamento. Elas tramitam, respectivamente, no Senado Federal e na Câmara dos Deputados. As duas defendem um IVA como resultado da reunião de tributos federais, entre eles PIS e Cofins, ao ICMS estadual e ao ISS municipal. O governo federal não tem proposta formal, mas a equipe econômica estuda a criação de um IVA inicialmente no âmbito federal, reunindo PIS e Cofins, que depois teria adesão de Estados e municípios. O governo também tem estudado restringir as deduções no IR das pessoas físicas.
Secretário da Receita Federal de 1995 a 2002, nos dois mandatos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Everardo administrou a instituição da antiga CPMF, cobrada de 1997 a 2007. Hoje, ele não é contra uma nova tributação sobre transações financeiras, desde que com uma alíquota baixa e com possibilidade de compensar – sem substituir, de modo parcial ou integral – a contribuição patronal sobre folha. Na semana passada, porém, o presidente Jair Bolsonaro decidiu que o governo não vai defender a recriação de um imposto nos moldes da CPMF.
Em conversa no saguão de um hotel em São Paulo, Everardo lembrou que também durante seu período à frente da Receita foi garantida a isenção de IR para a distribuição de dividendos. Reverter a medida, para ele, seria um erro porque forçaria o reinvestimento. “Hoje estou livre para reinvestir, investir em outro negócio ou consumir. Tributando dividendos eu reduzo a liberdade econômica.” Segundo ele, a isenção de dividendos, combinada com outras medidas, permitiu um crescimento real de 117% na arrecadação do IR das pessoas jurídicas de 1996 a 2002. Voltar a tributar dividendos é uma das medidas em estudo pelo governo federal.
A seguir os principais trechos da entrevista:
Valor: Como o senhor avalia as principais propostas de reforma em discussão?
Everardo Maciel: Nós temos um diagnóstico malfeito. Os verdadeiros problemas tributários não estão sendo tratados, o que existe é uma espécie de passarela de propostas. As principais questões tributárias hoje são insegurança jurídica, excesso de litigiosidade, burocracia, e problemas específicos, pontuais, de tributos. As três primeiras nada têm a ver com tributos. Os problemas monumentais com que me defronto decorrem de processo tributário e não dependem do imposto. Um auto de infração de R$ 6 bilhões, por exemplo. Isso não dependeu do imposto, está relacionado com o processo tributário.
Valor: Mas o que o sr. acha das propostas que propõem o IVA?
Everardo: As pessoas me perguntam o que acho sobre 27 legislações de ICMS. Elas existem porque o imposto é estadual e temos 26 Estados mais o Distrito Federal. O que é chocante é constatar que não há diferença significativa entre elas. As diferenças são em regimes especiais, o que é um problema. Há um processo que já não está tão grave quanto esteve antes, de guerra fiscal.
Valor: Mas há diferenças de alíquotas de ICMS, não?
Everardo: Sim, mas isso não quer dizer nada. Não foi essa a intenção da Constituição de 1988? O ICM, que antecedeu o ICMS, tinha alíquota única. Não funcionou. Agora, o contrário de alíquota única não é uma infinidade de alíquotas, é um número pequeno de alíquotas. O que se disse é que os Estados precisariam ter liberdade. Mas a rigor, eu não vejo nenhuma dificuldade se um Estado tem alíquota de ICMS de 17% num determinado produto e outro tem de 18%. Isso é irrelevante. Nenhum país do mundo que tem um IVA tem alíquota única. Alemanha, Áustria, Austrália, Canadá, todos eles têm muito mais que uma alíquota. A Índia, caso mais recente, tem seis alíquotas.
"IVA com alíquota única atingiria classe média de uma forma mortal”
Valor: É o caso de criar faixas de alíquotas para o IVA?
Everardo: Não, esse não é o problema central. É verdade que o ICMS tem problemas. Tem o problema da guerra fiscal. A Lei Complementar 160 [que convalidou os benefícios irregulares existentes e restringiu a concessão de novos incentivos de ICMS] foi um passo importante e precisa de complementos, mas está na pista certa. A alíquota única quer dizer apenas uma coisa: transferir tributo de um contribuinte para outro. Todos do regime do lucro presumido terão aumento de carga tributária inacreditável, acima de 300%, podendo chegar a mais de 600%.
Valor: Isso somente com mudança na tributação sobre consumo?
Everardo: Sim, as primeiras vítimas são todos os 850 mil optantes do lucro presumido, envolvendo pequenas prestadoras de serviços, pequenos comerciantes e industriais. O autônomo, por exemplo, pode chegar a ter 680% de aumento de tributação. Uma escola de tamanho médio, que hoje tem tributação que gira em 8%, passará para 25%. A fonte dela é mensalidade. Então vou impactar o preço da mensalidade escolar? E pior que gera um círculo vicioso. Por ter impactado o preço da mensalidade, eu tenho mais receita, e aí tenho mais imposto. Vira uma espiral tributária perversa. Médico já constituído, numa pequena clínica, tem aumento também nessa ordem de grandeza. Ele vai subir o preço da consulta? E para que fazer isso? Qual a lógica?
Valor: Quem mais pode ter aumento de carga?
Everardo: A agricultura toda. Setor de construção de civil, setor imobiliário, aumenta a prestação do Minha Casa, Minha Vida [MCMV], aumenta a prestação do plano de saúde, aumentam os aluguéis, sobretudo alcançando a classe média de uma forma mortal. Se acompanhada de uma redução ou eliminação da dedução dos gastos de saúde do Imposto de Renda, criamos a tempestade perfeita da sonegação. Ninguém vai ter interesse em pagar imposto. As piores distorções que existem em matéria tributária são sonegação e planejamento tributário abusivo. Se eu crio um ambiente favorável à sonegação, crio uma distorção mortal.
Valor: E quem ganha?
Everardo: As instituições financeiras, que hoje pagam PIS e Cofins sobre receita. No primeiro semestre deste ano, a arrecadação, não incluindo os chamados serviços auxiliares de instituições financeiras e não deduzida a parte relacionada com serviços, foi de R$ 12 bilhões. Essa conta será paga por alguém. Quem pensa que ganha é quem tem alíquota de IPI muito alta, mas ele pode perder com o imposto seletivo. O que pode estar como agenda oculta disso? Extinguir a Zona Franca de Manaus.
Valor: O sr. acha há uma agenda oculta nas propostas?
Everardo: Claro. Ou então não tem nexo. Eu tenho críticas à Zona Franca. Mas, se pretende extinguir, que se diga abertamente. O que vai dizer aos milhares de desempregados da Zona Franca de Manaus? Que acabou e aquilo é apenas uma fantasia? A Zona Franca tem problemas, mas o remédio não é extingui-la. Por que não se fala das alíquotas por setores nessas propostas? Por que não se discute a repercussão sobre os preços e quem é alcançado por ela? Por que não se diz com precisão quem são os beneficiários da proposta?
Valor: Essa crítica do sr. vale tanto para o IVA nacional como para o IVA federal estudado pela atual equipe econômica?
Everardo: Sim. Se houver unificação de tudo para a não cumulatividade, teremos o mesmo efeitos. Temos as falsas simplificações. PIS e Cofins são idênticos. Estamos fazendo fusão do quê? O que distingue PIS e Cofins é a destinação. Quando faço a fusão, abro debate sobre destinação, inclusive uma hipersensível, que é o Fundo de Amparo ao Trabalhador [FAT], num país com 13 milhões de desempregados. E outra é a seguridade social, cujo financiamento não está claro. Se juntar o ICMS na mudança, piora. E juntar ICMS e ISS é uma violência contra o pacto federativo.
Valor: Fere a autonomia de Estados e municípios?
Everardo: Ninguém me venha dizer que eles podem aumentar alíquota porque não é verdade. Poder aumentar tendo que aumentar para todos, não haverá aumento para nenhum. Ninguém falou que por uma dessas propostas esses assuntos são da Justiça Federal. Imagine o custo de reestruturação da Justiça.
Valor: O sr. disse que o IVA é um imposto ultrapassado. Por quê?
Everardo: Ele não lida com economia digital. Foi um imposto constituído para tributar cadeias produtivas. Hoje nós temos redes. É um imposto que precisa do sentido de origem e destino. Como estabelecemos isso nessa nova economia?
"Hoje posso investir em outro lugar ou consumir. Com IR no dividendo, reduzo a liberdade econômica”
Valor: Então o sr. não apoiaria nenhum dessas principais propostas atualmente em discussão?
Everardo: Não, nenhuma. Acho que estamos olhando com um prazer de uma retórica autodifamatória. Nós temos o pior dos mundos. Você olhou o resto do mundo? Pega a legislação de Imposto de Renda americana. Eu fiz um resumo da reforma de [Donald] Trump. Deu 80 páginas. A legislação tem 80 mil páginas.
Valor: A reforma de Trump deixou a carga sobre renda das empresas americanas mais baixa do que a das brasileiras?
Everardo: Depende. Não dá para medir carga olhando apenas alíquotas. Teve empresa americana que passou a pagar mais depois, porque a reforma não fez somente redução de alíquotas, mas criou dois impostos: um contra abuso e outro sobre intangíveis. Esses impostos são calculados sobre alguns elementos que constituem o lucro, como juros. Foram estabelecidas restrições à dedutibilidade dos juros.
Valor: E a proposta de tributar dividendos e reduzir o IRPJ, em estudo pelo governo federal?
Everardo: Se eu diminuo de um lado e aumento em outro, o que é que se quer fazer? Aumentar, deixar igual ou diminuir? Se quer deixar igual, por que fazer essa confusão toda?
Valor: Um argumento é que tributar dividendos estimularia investimento.
Everardo: Isso é mentira. Se distribui dividendo, está proibido reinvestir. Ao contrário, se disser que vai tributar dividendos, a empresa está obrigada a reinvestir e isso pode não ser a melhor opção. Hoje estou livre para reinvestir, investir em outro negócio ou consumir. Tributando dividendos eu reduzo a liberdade econômica. Mas, pior do que isso, trago de volta um tipo de sonegação que no Brasil não existe mais.
Valor: A distribuição disfarçada de lucros?
Everardo: Que não existe mais no Brasil, só um caso ou outro, mas que existe no mundo todo.
Valor: E o lucro presumido também seria afetado?
Everardo: Sim. No lucro presumido, há uma presunção. Eu digo que eu vou pagar isso, mas fiquei sabendo que não posso fazer planejamento nem ter incentivo, preciso pagar IR mesmo tendo prejuízo e também não posso compensar prejuízo. O que fiz? Fiz um acordo e não discuto outra coisa. Isso está combinado também com os dividendos. E, quando se fez as duas coisas simultaneamente, a arrecadação cresceu excepcionalmente.
Valor: Foi benéfico à economia?
Everardo: Os contribuintes ficaram satisfeitos, porque não precisavam mais sonegar, deu um pau na informalidade.
Valor: Os dividendos ficaram isentos quando o sr. era secretário da Receita, não?
Everardo: Sim, no período em que eu estava lá, o IR das pessoas jurídicas, com essas e outras medidas, teve crescimento real de 117% de 1996 a 2002. Passou de 1,5% do PIB para 2,2% nesse período. Outro problema dos dividendos é que muitas empresas não podem distribuir porque há limitações da legislação tributária e societária.
Valor: Isso quer dizer que a receita com essa tributação pode não ser tão grande quanto se imagina?
Everardo: Sim, eu conheci estudo não oficial da Receita mostrando que a relação de um ponto percentual no IR sobre lucro são quatro para o IR sobre dividendos. Se eu reduzo dez pontos na alíquota de IR, teria que tributar dividendos em 40% para ficar equilibrado.
Valor: E tributação sobre folha compensada com cobrança sobre movimentação financeira, que o governo federal chegou a estudar. O que o sr. acha?
Everardo: O Brasil nunca quis tratar do problema da Previdência e tentava contornar isso via elevação de alíquota. Essa alíquota sobre folha era de 8%, hoje é de 20%. No lugar de resolver o problema da Previdência, que é chato, aumentaram a alíquota. Aumentou-se a alíquota e o empregado virou autônomo. Aí criaram a alíquota sobre autônomo. No passo seguinte a pessoa vai para a informalidade. E não se percebe que o que empurra tudo isso é o problema da Previdência. É um absurdo o modelo que há hoje de tributação sobre folha. Não tenho nenhum preconceito contra tributação sobre transações financeiras. Administrei isso e não tive nenhum problema. Disseram que o mundo ia acabar. Nada aconteceu. O que eu vi foi ter redução de sonegação. Mas eu não creio que exista uma alíquota sobre movimentação financeira que permita acabar com a tributação sobre folha.
Valor: A alíquota desse tributo seria muito alta?
Everardo: Sim, portanto, inviável. Produzir uma arrecadação de R$ 300 bilhões ao ano, não creio. Acho que poderia haver uma compensação. O pagamento de um tributo sobre movimentação financeira teria que ter alíquota baixa e poderia se permitir a compensação com a contribuição previdenciária patronal. Não substituindo ela ou parte dela, mas sim permitindo a compensação.
Valor: E o financiamento da seguridade como um todo?
Everardo: Quanto ao problema de seguridade social, a gente vai ter que inventar novas fontes de tributação. Tem uma que acho exótica por enquanto, que é a tributação sobre robôs, mas tem gente muito preparada falando disso, como Robert Shiller [Nobel de Economia em 2013] e Bill Gates [fundador da Microsoft ].
Valor: O que o sr. acha, então, que precisa ser feito em termos de reforma tributária?
Everardo: Um dos problemas centrais hoje é o lançamento do Fisco, que gera processo administrativo, em que se gasta seis ou sete anos. Quando perco, vou para o Judiciário, onde preciso formar garantia. No Judiciário fico uns 15 anos até o fim das discussões. Quando termina o litígio judicial, começa a execução fiscal. Dos 80 milhões de processos judiciais, 31 milhões são de execução fiscal. A ideia, que não é minha, mas foi desenvolvida por vários juristas, é que a parte perdedora na esfera administrativa pode recorrer diretamente ao tribunal, o que cria sucumbência, tira a necessidade de garantias e a execução fiscal passa a ser puramente administrativa. Pode questionar a execução no Judiciário, mas somente questões específicas, como abusividade. Outro problema é o estoque de precatórios. Precisamos de uma grande clearing [câmara de compensação]. Vamos pegar e limpar os precatórios, compensando com dívida ativa, com todos os prejuízos. Precisa ser coisa ousada, que fique bom para todo mundo.
Valor: O sr. também fala sempre dos litígios.
Everardo: Sim, o terceiro ponto é a questão dos grandes litígios. Precisamos definir quais são eles. Alguns são óbvios: planejamento tributário abusivo, para o qual é preciso uma nova redação para o artigo antielisão. Da forma como está cabe tudo, o que é um espaço de insegurança monumental. A tributação do ágio também é um assunto a ser resolvido. Fazer uma grande transação, o que traria arrecadação para o governo e resolveria o problema para as empresas.
Por Marta Watanabe — De São Paulo
Valor Econômico