O livro “Carnaval Tributário”, de Alfredo Augusto Becker, é considerado um clássico da literatura jurídica nacional pelas inúmeras críticas, repletas de fina ironia, ao complexo sistema tributário nacional. O que o autor não imaginou foi que, em dias atuais, essa complexidade seria potencializada pelo intenso voluntarismo jurídico que vem sendo expresso pelo STF. Talvez, fosse ele ainda vivo, renomearia a sua obra como “Carnaval Judicial Tributário”.

Um exemplo do que se afirmou acima é o recente julgamento, ou melhor, a ausência de julgamento, referente à exclusão do ISS da base de cálculo das contribuições ao PIS e da COFINS, temática que permanece pendente de uma definição pelo STF, no âmbito do RE n. 592.616/RS (tema 118 de repercussão geral).

Antes de tratar especificamente do que recentemente aconteceu no aludido julgamento, convém lembrar que, após 14 anos de tramitação só no STF – isso mesmo, 14 anos! –, a Corte definitivamente julgou o RE n. 574.706, e o pedido de modulação de efeitos lá formulado, para consolidar a tese de que “O ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da COFINS”.

Concorde-se ou não com a tese, a questão é que, ao assim decidir, o STF delimitou um conceito de faturamento, para fins de incidência das contribuições sociais, que exclui da sua composição os valores correspondentes a tributos que seriam pagos pelo consumidor e repassados pelo vendedor aos cofres públicos. Em outros termos, a posição do STF não se resumiu a casuisticamente determinar a exclusão apenas do ICMS destacado da base de cálculo de tais exações, mas, em verdade, fixou um conceito – certo ou não – do que seria faturamento.

Fechando esse parêntese, convém retomar o caso da exclusão do ISS da base de cálculo do PIS/COFINS.

Tal julgamento foi iniciado no Tribunal em 14.08.2020, oportunidade na qual o então Ministro Celso de Mello votou pela exclusão do ISS do cômputo das contribuições, da mesma forma que foi feito em relação ao ICMS. O julgamento foi retomado em 20.08.2020, com a abertura da divergência pelo voto-vista do Ministro Dias Toffoli, pela manutenção do ISS na base de cálculo, ao fundamento de que, diferentemente do que ocorreria com o ICMS, ele se sujeitaria ao regime cumulativo e não seria destacado em nota fiscal. Diante dessas considerações, a primeira pergunta que surge é a seguinte: considerando que o STJ estava julgando se os valores de ISS, embutidos no preço, seriam incorporados definitivamente ao patrimônio do prestador, ou seriam retidos e repassados aos Municípios, tal qual julgado em relação ao ICMS, qual a relevância desses pontos trazidos para a discussão da definitividade ou não do ingresso desses valores?

A função do regime não-cumulativo é evitar a tributação em cascata ao longo da cadeia, exatamente para que não haja uma carga tributária excessiva dentro do preço cobrado, pois tanto nele quanto no regime cumulativo (ISS), o repasse dos tributos (repercussão econômica) será feito no preço cobrado do consumidor.

A situação, entretanto, ainda piora.

Após o sobredito voto-vista, o Presidente do STF, Ministro Luiz Fux, destacou o caso, retirando-o do Plenário Virtual. Assim, todos os votos já proferidos são descartados e o caso será julgado presencialmente, muito provavelmente após a indicação de um novo integrante para a vaga vacante no Tribunal. Até lá, talvez se tenha mais anos de incerteza para que o STF, com uma nova composição, retome o tema. Aqui está a segunda pergunta a ser lançada: a existência de uma nova composição do STF deveria influir no resultado deste julgamento?

Levando em consideração que o STF definiu um conceito de faturamento para fins de apuração da base de cálculo do PIS/COFINS quando do julgamento do RE n. 574.706, a resposta para tal questionamento deveria ser um sonoro “não”.

Apesar da ginástica hermenêutica proposta no voto-vista, não vemos qualquer razão jurídica para distinguir a ratio decidendi que fora definida no precedente vinculante formado no RE n. 574.706, em relação ao que atualmente está sob julgamento do STF. O fato de alguns Ministros terem posições pessoais divergentes para o tema, algumas delas já expressadas quando do julgamento da exclusão do ICMS, não deveria mudar esse cenário, afinal o jurisdicionado quer saber a posição do STF, enquanto Corte constitucional, para a questão, e não dos seus Ministros, individualmente.

Em verdade, se o aludido senso institucional existisse, e o STF de fato prezasse por um modelo sério de precedentes, preocupado em fomentar a segurança jurídica e a coerência das decisões, a exclusão do ISS da base de cálculo do PIS/COFINS não seria uma questão problemática, e estaria apta a ter sido julgada nesta última sessão de 20.08.2020, com o mesmo resultado na discussão do ICMS, e por unanimidade de votos, com os Ministros divergentes se rendendo à posição consolidada pelo Tribunal, ainda que externada eventuais ressalvas particulares de consciência. E isso porque, repita-se, o que interessa aos jurisdicionados é a posição da mais alta Corte do país enquanto instituição perene, sendo irrelevante as convicções pessoais de Ministros divergentes. No país do “Carnaval Tributário”, todavia, só resta ao jurisdicionado torcer para não sambar e amanhecer com um gosto amargo de Quarta-Feira de Cinzas.

*Diego Diniz é advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária. Ex-conselheiro titular do Carf na 3.ª Seção de Julgamento. Professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP