Em um momento em que o tema da “reforma tributária” volta a ocupar posição de destaque, assumiu relevo projeto de emenda constitucional que pretende substituir cinco tributos incidentes sobre a produção, a circulação e o consumo por apenas um. IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins seriam gradualmente extintos, cedendo lugar a um “imposto sobre bens e serviços – IBS”. Aprovada na Comissão de Constituição e Justiça, a PEC 45/2019 tem boas chances de transformar o texto constitucional, tendo em seu favor o apoio de notáveis tributaristas e economistas, mas também a crítica de não menos ilustres personalidades.

O propósito deste texto, contudo, não é o de examiná-la em sua globalidade, tampouco cuidar de suas virtudes e defeitos de forma abrangente. Muitos já o fizeram, com bastante propriedade, e, acompanhados de vários outros, seguramente seguirão fazendo. O objetivo, aqui, é apenas o de abordar dois pontos que não estão sendo suficientemente referidos, seja por quem defende, seja por quem critica a proposta. E eles podem fazer com que a tributação indireta no Brasil seja consideravelmente aperfeiçoada, ou se transforme no pior pesadelo do contribuinte, do qual, para acordar, será preciso sair do país.

Refiro-me à natureza supostamente “indireta” do IBS, que seria pago “na verdade” pelo consumidor final, somada ao fato, a ela relacionada, de que o tributo seria “não cumulativo”, gerando créditos de forma ampla. Essas afirmações são feitas por defensores da PEC como solução — vejam só — para os problemas que se lhes apontam. É o que se ouve, por exemplo, quando se lhes objeta que o IBS elevará demasiadamente a carga tributária incidente sobre prestadores de serviços. Dentistas, advogados e contadores que hoje se submetem a 5% de ISS passarão a sofrer a incidência de um IBS de aproximadamente 25%, ao que os apoiadores da proposta replicam: “mas o crédito será amplo, e quem pagará esse ônus será o consumidor final!”. Prosseguem dizendo que, se o usuário do serviço for um consumidor final, ele pagará a conta; se for outro agente econômico, no caso, por exemplo, de um advogado que presta serviço a uma empresa, esta poderá creditar-se do valor do serviço, IBS incluso, e abater tudo do IBS que tiver a pagar nas operações seguintes. Assim, repete-se, o ônus será transferido ao consumidor final, não recaindo sobre nenhum agente produtivo.

São esses pontos, colocados como grandes vantagens, que podem transformar o IBS no pior pesadelo dos contribuintes brasileiros. Isso porque, no Brasil, a tributação dita “indireta” tem servido de pretexto para se fazer, juridicamente, uma divisão ronceira entre os sujeitos passivos, que os priva da maior parte dos seus direitos inerentes à relação jurídica tributária, notadamente aqueles que dizem respeito ao acesso à jurisdição. E, note-se: justamente por causa dessa crença de que “tudo se transfere ao consumidor final”.

Alude-se a um “contribuinte de direito”, que seria por lei obrigado ao pagamento do tributo, e a um “contribuinte de fato”, que suportaria o ônus correspondente. O problema é que, quando o “contribuinte de direito” pleiteia algum “direito” no âmbito da relação tributária, como, por exemplo, a devolução de uma quantia paga de maneira indevida, a administração tributária e o Judiciário afirmam que ele não pode fazê-lo, por ter “repassado” o ônus ao “contribuinte de fato”, que seria quem “na verdade” teria pagado o tributo, conforme se interpreta do artigo 166 do CTN. Mas, se o contribuinte dito “de fato” pleiteia judicialmente o reconhecimento desse mesmo direito, igualmente se lhe nega, ao argumento de que ele não tem relação jurídica com o Fisco. Em suma: no Brasil, o contribuinte “de fato” não é tão “só de fato” assim. Em verdade, sua existência tem vários efeitos jurídicos, mas todos destinados a tirar direitos do “contribuinte de direito”, sem atrai-los para si ou transferi-los a qualquer outra pessoa: faz com que evaporem.

Na União Europeia e no Canadá, algo parecido chegou a acontecer. Trata-se da passing on defense, ou “defesa do repasse”, que consiste em não restituir uma quantia paga indevidamente, mesmo não havendo qualquer dúvida quanto ao caráter indevido do pagamento. Argumenta-se que aquele que efetuou o pagamento teria “repassado” o ônus a terceiros, não podendo receber a devolução sob pena de enriquecimento sem causa. Na Europa, porém, a Corte de Justiça Europeia, depois de algumas idas e vindas, repeliu esse absurdo, pacificando que: (a) não se pode presumir que o repasse do tributo sempre ocorre, e que sempre ocorre integralmente; (b) não se pode presumir que o repasse, quando ocorre, dá-se sempre sobre o consumidor final, próximo elo da cadeia (o repasse para se dar “para trás”, com a barganha do empresário por preços mais baixos junto a fornecedores, ou no corte de outros custos); (c) o ônus da prova do repasse, fato impeditivo do direito do autor da ação de restituição, deve ser do réu, o Fisco; (d) mesmo tendo havido repasse, ainda será o caso de devolver o tributo indevido ao “contribuinte de direito”, pois a ocorrência do repasse nos preços obriga à pratica de preços mais altos e, com isso, à redução nas vendas, causando prejuízo que deve ser reparado com a restituição; (e) eventual disputa entre contribuinte de fato e o contribuinte de direito, por um desconto ou eventual devolução de parte do preço, será sempre uma questão autônoma, a ser resolvida entre ambos, se for o caso, no plano cível, sem qualquer interferência sobre a garantia do contribuinte “de direito” de acesso ao Judiciário para questionar cobranças tributárias indevidas e tê-las devolvidas (Caso San Giorgio – C-147).

Algo semelhante se deu no Canadá, com pronunciamento de sua Suprema Corte repelindo a tal passing on defense. Os fundamentos usados em tais cortes, aliás, há muito são invocados por parte da doutrina brasileira, mas não é o caso de alongar este texto com o exame detalhado de tudo isso. Ao leitor interessado, remete-se à leitura de trabalho acadêmico específico, no qual inclusive se podem achar as remissões aos respectivos julgados (clique aqui). O importante é lembrar que, no Brasil, atualmente, o contribuinte “de direito” tem transformada em missão praticamente impossível a devolução de um tributo dito “indireto” (ICMS, IPI ou ISS, precisamente parte dos que vão se “transformar” no IBS), sem que isso signifique a atribuição de quaisquer dessas faculdades ao contribuinte “de fato”. O acesso à jurisdição, garantido constitucionalmente, simplesmente desaparece, sendo tolhido de um sem que seja assegurado ao outro.

Mas não só: das confusões trazidas pela maneira equivocada como a tributação indireta é percebida no Brasil, tem-se também a ideia, já comentada aqui na coluna, de que o não pagamento de tributo indireto declarado pelo contribuinte “é crime” (clique aqui e aqui), pois teria sido pago “na verdade” pelo contribuinte de fato (que, novamente, veja-se, não é tão “só de fato” assim) e “apropriado” pelo contribuinte de direito inadimplente. Perceba-se que o IBS será, com alíquota sensivelmente aumentada, esse grande tributo que, declarado e não pago, ensejará a alegação da prática de um “crime” e, por conseguinte, o desencadeamento de toda a persecução penal como forma coercitiva de cobrança.

O segundo problema, relacionado a esse das contradições da tributação indireta, concerne aos créditos. Diz-se que todas as operações anteriores já oneradas pelo IBS gerarão créditos, pelo que a cobrança do imposto por alíquotas elevadas sobre pessoas situadas em posição intermediária na cadeia produtiva (por exemplo, de um advogado que presta serviços a uma empresa, também contribuinte do IBS) seria irrelevante para ambos, pois a empresa aproveitará o crédito, e tudo será ao final repassado ao consumidor.

Ora, o repasse ao consumidor nem sempre ocorre, como já explicado. Fosse fácil assim, nenhum empresário reclamaria da carga tributária, ou mesmo teria dificuldades por causa dela ou de qualquer outro custo, pois seria “só” repassar tudo no preço. Mas, mais grave que isso: saber o que “dá crédito”, e o que “não dá crédito”, é um dos temas mais polêmicos e conflituosos de todos os tributos não cumulativos que serão substituídos pelo IBS. E quanto mais “amplo” é o crédito prometido, maiores são os problemas.

Veja-se o ISS. É cumulativo. E há poucas, pouquíssimas questões postas na jurisprudência envolvendo a sua forma de cálculo. Há controvérsias sobre local do fato gerador, sobre o conceito de serviço, mas quase nada sobre a forma de cálculo. O ICM, antes do “S”, submetido a uma técnica de crédito físico (só geravam créditos as mercadorias compradas para serem revendidas), também envolvia poucos problemas nesse quesito. A introdução do “S”, e a promessa, com a Lei Kandir (LC 87/96), de créditos decorrentes de materiais de consumo (até hoje não concretizada, o que deve servir de alerta!), de bens destinados ao ativo fixo (a serem parcelados em 48 meses, outro alerta!), tornaram a não cumulatividade, em relação a esse imposto, muito mais conflituosa. Basta consultar a jurisprudência para conferi-lo.

E o PIS e a Cofins, então, dispensam comentários. Carf e STJ estão sobrecarregados de questões relacionadas ao “direito de crédito” em relação à não cumulatividade de tais contribuições. A celeuma em torno do “conceito de insumo” é apenas um exemplo. O certo é que a promessa de um “crédito amplo” tem sido continuamente descumprida através de uma legislação infraconstitucional e infralegal cada vez mais minudente, e de uma interpretação restritiva que dela fazem as autoridades fiscais, não raras vezes ratificada pelo Judiciário.

Em suma, exame da história recente, de quando o ICM se tornou ICMS, e, principalmente, de quando PIS e Cofins tornaram-se não cumulativas, é capaz de dar uma amostra muito eloquente da dimensão dos problemas que podem ser exponencialmente amplificados com a introdução do IBS. A quantidade de contribuintes que se esforçam para aderir ao Simples, ou a uma sistemática de apuração do Imposto de Renda pelo lucro presumido, só para escapar da não cumulatividade de tais contribuições, dão testemunho do quanto a mudança não foi tão boa — pelo menos para parte dos contribuintes, em especial os de menor porte — quanto se anunciava.

Não se está, com isso, desejando firmar posição contra a reforma. Pelo contrário. A ideia é apenas a de chamar a atenção para pontos que são muito graves e não parecem estar sendo lembrados nas discussões em torno da PEC 45/2019, as quais não devem ser levadas adiante de forma polarizada, como se o impasse consistisse em aderir ou não a uma religião, ou à torcida por um time de futebol. A questão não se deve resumir a “você é a favor ou é contra a PEC?”, a ser respondida com um “sim” ou um “não”, dispensados os fundamentos. É necessário ver o problema de forma racional e crítica, com esforço para enxergar evidências que contrariem nossas crenças pré-estabelecidas.

Em relação aos aspectos levantados neste texto, dispositivos que deixem bastante claro, no nível constitucional, o direito ao creditamento amplo, sem possibilidade de restrições como as vistas na legislação do IPI, do ICMS e do PIS e da Cofins, são necessários. O mesmo pode ser dito de normas que explicitem a irrelevância da existência de um “contribuinte de fato” para fins de retirar do “contribuinte de direito” quaisquer faculdades ou garantias inerentes à relação jurídico tributária, sendo esta uma ótima oportunidade inclusive para se corrigir o artigo 166 do CTN. Tais ajustes podem ser pensados e elaborados para transformar em solução algo que, do contrário, terá tudo para ser um enorme e possante amplificador de problemas.

Por Hugo de Brito Machado Segundo

Revista Consultor Jurídico