A pouco mais de um mês para entrar em vigor, a reforma trabalhista ainda enfrenta forte resistência de parte dos juízes do Trabalho, que apontam pontos do texto em conflito com a Constituição ou com acordos firmados internacionalmente.
Diante desse quadro, magistrados e advogados consideram que os primeiros meses de aplicação das novas regras podem ser turbulentos, causando incerteza jurídica e dificultando o planejamento das empresas.
Entre os pontos mais citados pelos ouvidos pela reportagem do Estadão/Broadcast Político, estão questões como a terceirização, os trabalhos intermitente e o insalubre para gestantes e lactantes, a tarifação de dano moral e parte dos itens de prevalência do negociado sobre o legislado.
À frente das críticas, está a Associação Nacional dos Magistrados (Anamatra), para quem muitos trechos correm o risco de "não pegar". Aprovada às pressas e com erros técnicos, diz a Anamatra, a reforma trabalhista criará um "caos jurídico", caso seja aplicada com literalidade, como querem os defensores da mudança.
"Para se ter uma ideia, a nova lei resolveu regular o dano extrapatrimonial, especificar que bens podem ser violados e dar margem para dano moral. Mas na lei você não encontra direito à vida, à liberdade, à expressão religiosa. Se esses bens forem violados na relação do trabalho, não vai ter espaço para danos morais?", exemplifica o presidente da associação, Guilherme Feliciano.
Juíza do Trabalho em Belém (PA), Maria de Nazaré Medeiros se mostra inclinada a não aplicar parte das mudanças como a da atividade intermitente. Apesar de afirmar que juízes só podem aplicar o chamado controle difuso de constitucionalidade – posicionarem-se caso a caso -, Maria de Nazaré vê grandes chances de que esse ponto seja julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O trabalho intermitente "atenta contra o valor social do trabalho, que está lá na Constituição", diz.
Parte desses questionamentos, no entanto, podem ser reduzidos através da Medida Provisória (MP) que o governo do presidente Michel Temer deve editar para acompanhar a promulgação da reforma, prevista para 11 de novembro. A MP foi uma promessa do Planalto para evitar que o Senado alterasse o texto aprovado na Câmara, o que atrasaria sua tramitação.
Dissidência. A posição da Anamatra gerou uma reação dentro categoria. Em agosto, surgiu uma nova associação de magistrados do trabalho, a Ajutra, no Rio de Janeiro. Com cerca de 60 integrantes, a entidade tem como objetivo representar o que seria a "maioria silenciosa" da classe. "Existe um senso geral de que juízes do trabalho são contra qualquer mudança da legislação, o que não é verdade. Queremos dar voz a grande parte da magistratura", diz Otavio Calvet, presidente do órgão.
Segundo Calvet, a Ajutra nasceu de uma insatisfação da Anamatra que precede o debate da reforma, mas o tema tornou-se agudo com as diferenças. "Nascemos regionais, mas dependendo das adesões, nada impede que vire uma organização nacional", afirmou o juiz, para quem o texto aprovado em julho pelo Congresso será aplicado em sua maioria, à exceção de uma minoria de pontos identificados por juízes e também por advogados.
"Como foi o caso do novo Código Civil em 2015, toda nova lei causa dúvida. Isso é natural, não pode ser confundido com aversão contra reforma trabalhista ou bandeira ideológica", diz.
Em meio à discussão, a Anamatra realiza entre hoje e amanhã uma jornada para discutir especificamente a reforma. No evento, que contou com 650 inscritos – o dobro do registrado na jornada anterior -, magistrados, advogados e procuradores vão propor e discutir enunciados sobre como podem ser interpretadas as mudanças trazidas pela Lei nº 13.467/2017. Os enunciados aprovados devem ser distribuídos aos associados.
A organização do evento causou polêmica dentro da categoria, com acusações de que ali poderia estar sendo preparada uma cartilha para orientar os que não desejam aplicar a nova lei. "Isso vem de segmentos conservadores dentro da magistratura, sabem perfeitamente que são ilações absolutamente levianas", rebate Feliciano. "Alguns acreditam ser possível aplicar a lei sem interpretá-la, mas a função do juiz é exatamente esta", critica.
Judicialização. As incertezas podem, ao menos num primeiro momento, prejudicar um dos principais benefícios da reforma trabalhista, segundo seus defensores: a redução do número de processos na Justiça. Para o procurador Roberto Rangel Marcondes, do Ministério Público do Trabalho de São Paulo, a tendência é que o volume de ações cresça no curto e médio prazo. "Vão existir muitas dúvidas e questionamentos", ponderou. Em sua opinião, essa tendência só deve se reverter à medida em que essas divergências forem chegando ao Tribunal Superior do Trabalho (TST) ou até o STF, instâncias que podem uniformizar a interpretação.
Tal expectativa gera apreensão do outro lado. Presidente da Associação Comercial do Paraná (ACP), Glaucio Geara comenta que os empresários com quem conversa receiam um aumento da insegurança jurídica no início do processo. "Estão todos cautelosos. Acredito que (a reforma) será bom tanto para o empregado quanto para o trabalhador, mas precisamos ver como vão ser esses primeiro meses de aplicação", disse. "Se você consultar hoje vinte advogados, vai encontrar 20 posições diferentes".
Já o advogado Claudio Eduardo Dantas Costa, sócio da Peixoto e Cury Advogados, acredita no contrário. E um dos principais motivos deve ser a mudança nas regras sobre o pagamento dos honorários de sucumbência. "Agora se o trabalhador perder, ele paga os honorários do advogado da parte contrária em relação a cada pedido" indeferido pelo juiz, explica. "Então aqueles processos fantasiosos tendem a desaparecer. A reclamação trabalhista vai passar a ser mais justa no sentido de que vai refletir mais o que é de direito".
Para o procurador jurídico da Federação das Indústrias do Paraná (Fiep), Marco Antônio Guimarães, as empresas não vão querer esperar o TST ou STF se posicionarem para colocar em práticas as mudanças. "Um julgamento no TST pode demorar oito anos, não vamos esperar tudo isso", diz. "Obviamente, algumas situações devem ser declaradas inconstitucionais", pondera, dando como exemplo a quitação anual do contrato de trabalho. "Cabe a cada empresa analisar o que pode vir a ser declarado inconstitucional em seu planejamento".
Supremo. Além do cenário em que as divergências sobre a interpretação dos pontos da reforma façam esse caminho "mais longo", galgando as instâncias superiores, existe ainda a possibilidade de que a Procuradoria-Geral da República (PGR) ou entidades como confederações de sindicatos e partidos políticos provoquem diretamente o STF como fez, em agosto, o então procurador-geral Rodrigo Janot. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de Janot questiona a imposição do pagamento dos honorários advocatícios para beneficiários da Justiça gratuita.
"Num País onde 90% dos assalariados recebe até dois salários mínimos, é fácil presumir que a maioria dos trabalhadores se beneficia de Justiça Gratuita", afirma o desembargador Cássio Colombo, do TRT do Paraná, sobre as chances da ADI vingar. Apesar da convicção, Colombo crê que, com tanta diversidade de opiniões, é pouco provável que outras ADIs surjam. "Acho que ninguém vai provocar o STF como fez a PGR. Eles escolheram esse tema justamente para sentir o chão", disse, acrescentado que, com a troca de procurador-geral – Raquel Dodge assumiu no mês passado – é difícil saber quais serão os próximos passos nesse sentido.
Marcondes, do MPT-SP, concorda. "Foi mais um balão de ensaio. Tanto que o artigo que escolheram foi a dedo", diz. Para o procurador, a atual composição do Supremo e o momento mais conservador da sociedade torna "temerário" ingressar com novas ADIs, já que a palavra do STF é final. "O que o MP pretende fazer é ir no varejo: entrar com ações, arguir a inconstitucionalidade dos pontos, formar uma jurisprudência que vai amadurecendo até chegar ao Supremo".