Quem atua na área tributária, em especial na advocacia privada, provavelmente já ouviu a pergunta, feita por algum cliente com pendências junto à Receita Federal: “- Quando será que vem um novo REFIS?”. A sigla (que vem de “Regularização Fiscal”) designou um primeiro parcelamento especial e diferenciado, surgido em 2000 (Lei 9.964/2000), com o qual o Governo Federal pretendeu estimular contribuintes a regularizarem sua situação junto ao Fisco, pagando débitos em condições favorecidas. A ideia era a de não matar a galinha dos ovos de ouro, permitindo às empresas continuar em funcionamento, e, ao Fisco, receber pelo menos uma parte de uma dívida que, de outro modo, poderia ser impagável.

A pergunta sobre “quando virá um novo REFIS” tornou-se frequente, contudo, porque foi mais ou menos isso o que passou a ocorrer depois da previsão do primeiro deles, em 2000. Nos anos que se seguiram, não raro próximo de pleitos eleitorais, publicaram-se leis com parcelamentos semelhantes, os quais passaram a ser apelidados de “REFIS 2”, “REFIS 3”, e assim por diante. Embora as condições exigidas por cada uma dessas leis fossem ligeiramente diferentes, assim como os descontos concedidos, havia em comum a circunstância de serem especiais e episódicas, permitindo o parcelamento de dívidas específicas, decorrentes de fatos geradores ocorridos até determinado período, devendo a adesão ocorrer também dentro de certo limite temporal. Daí, nos intervalos havidos entre cada um deles, a crescente expectativa pelo “próximo”.

Essa expectativa, como se pode imaginar, tinha efeito prejudicial sobre o adimplemento espontâneo dos débitos tributários, notadamente sobre aqueles contribuintes que desenvolviam grande esforço para manter a pontualidade em seus compromissos. O reiterado estabelecimento de tais programas sinalizava em sentido contrário, dispensando multas e juros e concedendo prazos adicionais àqueles que não se mantinham adimplentes, fazendo com que os demais se sentissem no papel de bobos.

Nesse cenário, surge a Medida Provisória 899/2019, editada em 16 de outubro p.p., a disciplinar o instituto da “transação tributária”, prevista no art. 171 do Código Tributário Nacional. Em termos muitos simples, e diretos, pode-se dizer que ela institui mais um REFIS, só que passível de concessão a qualquer tempo (não há mais “janelas” para adesão), e apenas para quem o Fisco decidir conceder. Reavivam-se, com isso, diversos debates, que há muito giram em torno do instituto da transação tributária. E se adicionam outros, decorrentes de algumas disposições criativamente inseridas no aludido diploma legal. O presente texto não objetiva exaurir o assunto, o que não seria viável ou mesmo adequado a este espaço, mas apenas apontar alguns desses possíveis questionamentos.

Em um nível mais geral, pode-se ponderar a respeito da conveniência ou mesmo da validade de se adotar, no campo tributário, o instituto da transação, por meio do qual, mediante concessões mútuas, as partes podem por fim a um litígio e com isso extinguir o crédito tributário. De um lado, a obrigação tributária é ex lege, ou seja, decorre da lei, não da vontade das partes. Assim, não poderia, em tese, a vontade alterar a sua dimensão. De outro, como consequência disso: a atividade administrativa das autoridades que cobram o tributo é plenamente vinculada, sem espaço para juízos de conveniência e oportunidade em torno do objeto e dos motivos dos atos a serem praticados (CTN, art. 3.º), o que se revela incompatível com poderes discricionários para transigir.

Dir-se-á, em oposição, que é uma lei – ou uma medida provisória com força de lei – que está permitindo a transação, com amparo no CTN, cujo art. 171 pode ser visto como regra mais específica, excepcional, a prevalecer sobre o art. 3.º do mesmo Código. Mas os problemas da transação, em matéria tributária, não decorrem apenas de questões jurídico-formais. Trata-se de um acordo para encerrar um litígio, e a realização deste pressupõe que as partes estejam em um mesmo nível, ou patamar, que lhes confira condições para negociar com igualdade, o que não é exatamente o caso da relação que se estabelece entre o Fisco e o contribuinte. Pelo menos se se considerar a generalidade dos contribuintes, o que remete a outro problema: a transação será, como dito, algo muito semelhante ao que eram os vários “REFIS”, com o diferencial de que será concedida apenas a quem a Fazenda desejar conceder, com larguíssima margem de discricionariedade. Ou seja: o Fisco realizará a transação apenas quando isto lhe convier, ou com quem tiver cacife suficiente para realizar um acordo vantajoso.

Essa amplitude, em tese, pode ser boa, fazendo com que somente se concedam prazos e condições diferenciados para aqueles que, de outro modo, não teriam como pagar, e que não agiram com dolo, simulação etc., de sorte a que não se sintam tolos aqueles que se esforçaram para pagar suas dívidas em dia. Ou seja: permite conceder um “REFIS” só para quem merecer, e nos casos em que o Fisco também tiver algo a ganhar com a medida. Mas, na prática, ela pode não ser tão boa, levando a que se concedam condições melhores a uns, e não a outros, sem justificativas plausíveis para tanto. Não é demais lembrar que, na História do Direito Tributário, houve razões importantes para que o soberano tivesse de cobrar tributos nos termos da lei, e não conforme seu arbítrio. Elas não decorriam apenas dos excessos praticados contra alguns, mas também do generoso tratamento franqueado a outros, aspectos que a transação tributária pode ressuscitar.

Pode-se objetar que a transparência e a publicidade das transações realizadas serão capazes de evitar tais problemas (apesar de se resguardar o sigilo fiscal?), e que a relativa flexibilização permitida pelo instituto é necessária para “modernizar” o Direito Tributário. A MP, por outro lado, dispõe sobre uma série de limites e princípios a serem observados na transação. Como não se pretende encerrar os assuntos, mas apenas suscitá-los, então que se aceitem tais ponderações, mesmo que apenas para prosseguir no exame do texto da medida provisória, que ainda reserva algumas surpresas.

Há pontos positivos no texto. É o caso da vedação a que a transação diga respeito a multas agravadas, aplicadas nos casos de dolo, fraude, simulação, em que se configure crime contra a ordem tributária (art. 5.º, § 2.º, II, da MP 899/19), algo ausente dos REFIS anteriores e que os tornava tanto mais atrativos quanto mais graves fossem as irregularidades cometidas pelo contribuinte (o que aumentava o desestímulo ao cumprimento espontâneo e pontual dos deveres fiscais em relação aos demais). Ou a permissão de que as partes transacionem sobre a suspensão de processos executivos e da própria exigibilidade do crédito tributário, a demonstrar que os REFIS anteriores, eram, sim, uma modalidade de transação, embora tenha havido manifestações jurisprudenciais em sentido contrário. Desde o primeiro REFIS, tinha-se ali uma transação, só que por adesão, aplicável de modo indistinto a todos os que por ele optassem: extinção do crédito por concessões mútuas, o Fisco abrindo mão de multas, juros e prazos, e o contribuinte, dentre outras coisas, de seu direito de questionar a legalidade do que se lhe exigia. É o que se pode passar a fazer com a MP 899, só que com ampla liberdade – para o Executivo – quanto aos possíveis destinatários e aos termos de cada transação.

Há, finalmente, duas surpresas que não podem deixar de ser mencionadas.

A primeira é a previsão de que o contribuinte que descumprir os termos da transação, levando à sua rescisão, poderá ter sua falência requerida pela Fazenda Pública (art. 8.º, II, da MP 899/2019). E, a segunda, a ressalva de que os servidores que atuem em transações apenas respondem nos casos de fraude ou dolo destinados à obtenção de vantagens para si ou para outrem (MP 899, art. 20). Caso se entenda que a transação foi desastrada para os interesses do Fisco, ou abusiva em relação aos direitos do contribuinte, mas não beneficiou especificamente a própria autoridade ou a um terceiro, não há responsabilidade, seja civel, penal ou administrativa. Excesso de exação, por exemplo, não poderá ensejar qualquer responsabilidade, caso o abuso, ou o dano, não decorram de comprovado dolo ou fraude para beneficiar alguém.

Quanto à primeira dessas disposições, trata-se de claro e abusivo expediente para contornar a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pacífica no sentido de que a Fazenda não pode requerer a falência do contribuinte. E a razão de tal entendimento do STJ é muito simples: a Fazenda não participa do processo de execução coletiva que é a falência. A execução fiscal continua tramitando individualmente. Assim, não faz o menor sentido que a Fazenda possa pedir a instauração de um processo do qual ela simplesmente não pode participar, apenas para coagir seu devedor ao adimplemento do débito. E isso para não referir o detalhe de que o texto constitucional veda o uso de medida provisória para disciplinar matéria de Direito Processual Civil. Trata-se, portanto, de uma sanção política, inválida formal e materialmente. Na verdade, rescindida a transação, deve-se retornar ao status quo ante, seja no que tange à possibilidade do Fisco exigir multas e juros dispensados, seja no que tange à possibilidade de o contribuinte discutir o débito em sua integralidade, sem que se adicionem sanções que, de uma forma ou de outra, seriam inconstitucionais.

Quanto à segunda surpresa, ela certamente decorre do medo, generalizado, que as autoridades têm, de tomar decisões que favoreçam particulares, em detrimento da Fazenda Pública. O servidor fazendário que lavre muitos autos de infração, impondo duras exigências aos contribuintes, será considerado “exemplar” e “muito sério”, mesmo que seus autos sejam posteriormente anulados na via administrativa ou no âmbito judicial. É possível mesmo que na repartição se lhe conceda uma medalha pelos “esforços em prol dos interesses da coletividade”. Mas aquele fiscal que reconheça isenções, ou desconstitua cobranças ilegais, talvez comece a inspirar suspeitas nos colegas… Isso explica a injustificável escassez de casos em que se vê aplicado o art. 316, § 1.º, do Código Penal, que diz ser crime a autoridade exigir tributo que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, se emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza. Autoridades sofrem persecução penal quando deixam de cobrar o tributo. Mas raramente, ou mesmo nunca, quando cobram o que não deveriam. Com isso, na dúvida, ausente uma disposição legal ou uma orientação normativa interna claríssima em favor do cidadão, adota-se o entendimento contrário a este e favorável ao Estado, ainda que seguido de um conselho pessoal ao cidadão inconformado: “- Vá para a Justiça, que o Sr. tem razão! Mas eu não posso reconhecer isso administrativamente, porque, o Sr. sabe, eu ‘tenho que me preservar’…”.

Talvez seja para evitar o medo que inspira servidores a agirem assim que a MP veicula a exclusão de responsabilidades constante de seu art. 20, mas isso não é suficiente para lhe conferir validade. Além de ser vedado às medidas provisórias tratar de matéria penal, a redação do art. 20 da MP 899/19 sofre do vício que tenta combater, pois só enxerga como possível excesso aquilo que favorece pessoalmente a própria autoridade ou a um terceiro. É preciso lembrar que ilícitos, penais, civis e administrativos, também se praticam contra o contribuinte, sem que se favoreça ninguém em particular, vale dizer, mesmo quando praticados em prol do “interesse público”. E, nesse caso, se o agente causar dano a um particular, em virtude de seu comportamento no âmbito de uma transação, sua responsabilidade – ou o direito de o Fisco acioná-la regressivamente – decorrerá do art. 37, § 6.º, da CF/88, que não pode ser revogado por uma MP. A mentalidade de que a autoridade séria é aquela excessivamente dura nas exigências que faz, aliada ao disposto no art. 20 da MP 899/19, e à elevada assimetria geralmente presente em tais negociações, pode fazer da transação um ambiente em que o sujeito passivo poderá sofrer os mais variados abusos, os quais restarão impunes desde que ninguém tenha deles se favorecido pessoalmente. Seria a volta aos tempos em que os cobradores de tributos escolhiam como e de quem exigira exação, sem se responsabilizar pelos excessos havido nessas cobranças?

Consultor Jurídico