Recentemente o Presidente do país editou a Medida Provisória 1.171/23 que dispõe sobre a tributação da renda auferida por pessoas físicas residentes no país em aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior, entre outras disposições.

Apesar de possivelmente ausentes os pressupostos constitucionais de relevância e urgência, exigidos para esta espécie normativa (conforme o Art. 62, caput, da Constituição Federal de 1988), o fato é que a Medida provisória, que poderá ou não ser convertida em lei após a sua devida apreciação pelo Congresso, tem eficácia imediata

Pela primeira vez o Brasil trata frontalmente do instituto do trust na legislação.

O instituto é largamente utilizado por indivíduos e entidades em todo o mundo, notadamente nos países de tradição anglo-saxã, para realizar reorganizações de estruturas de controle de grupos econômicos, planejamentos sucessórios, proteção do patrimônio de menores ou de incapazes ou atividades filantrópicas. Os trusts observam as regras da jurisdição onde são constituídos.

Já nos sistemas jurídicos de origem romano-germânica fundados na civil law, como o sistema brasileiro, não há instituto jurídico que corresponda perfeitamente ao trust.

Era conhecida, até então, a tentativa de introdução do trust em nosso ordenamento jurídico por meio do Projeto de Lei 4.758/20, que atualmente tramita sob rito ordinário no Congresso e aguarda apreciação pelo Senado.

O PL visa incorporar o trust ao ordenamento jurídico brasileiro, de forma a acomodá-lo mais próximo ao conceito advindo das tradições dos sistemas jurídicos de origem anglo-saxã.

No entanto, a MP 1.171/23 acabou por inovar e introduzir o trust em nosso ordenamento, entretanto, de forma distinta do conceito estrangeiro. Aparentemente, o intuito da MP foi o de ampliar a sujeição de rendimentos e patrimônios detidos por brasileiros no exterior – englobando-se aí os rendimentos e ganhos de capital relativos aos bens e direitos objeto de trust no exterior – à tributação no Brasil, a partir de 1º de janeiro de 24.

A nova norma, no entanto, parece essencialmente positiva do ponto de vista da segurança jurídica, na medida em que estabelece que “a distribuição pelo trust ao beneficiário, a partir de 1º de janeiro de 2024, possuirá natureza jurídica de transmissão a título gratuito pelo instituidor para o beneficiário, consistindo em doação, se ocorrida durante a vida do instituidor, ou transmissão causa mortis, se decorrente do falecimento do instituidor” – ou seja, se prevalecer a redação da MP, a partir de janeiro de 2024, em casos de distribuição de rendimentos ou bens de trust no exterior a beneficiários ou herdeiros brasileiros, incidirá o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), de competência estadual (com alíquota de 4%, atualmente no estado de SP, por exemplo), afastando-se, assim o risco da interpretação generalista da incidência de Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (IRPF) sobre rendimentos de qualquer natureza recebidos de fonte pagadora no exterior, que atingir a alíquota de 27,5%, como a Receita chegou a entender, muito equivocadamente, há alguns anos atrás, conforme Solução de Consulta nº41/20.

De fato, os países de tradição romano-germânica sempre tiveram dificuldade em compreender e incorporar em sua ordem interna o conceito de trust, visto que o instituto acarreta a divisão da propriedade, contrariando a característica de exclusividade que é inerente à propriedade no sistema jurídico fundado na civil law.

No direito anglo-saxão, é reconhecida a propriedade plena dos bens conferidos ao trust, fundada na lei, sem a exclusão do direito dos beneficiários à propriedade sobre os mesmos bens, fundada em “equity”, que tem os costumes como base da aplicação do direito.

A possibilidade de se reconhecer o direito de propriedade de um mesmo bem ou direito a pessoas distintas deriva de um conceito próprio do direito anglo-saxão chamado “dual ownership”, que não é comum aos sistemas jurídicos de tradição romano-germânica. Não obstante, a partir da transferência dos bens para um trust, tais bens passam a ser de titularidade do trust e seus beneficiários teriam o direito de receber frutos e/ou a propriedade de tais bens sob a condição de acontecimentos futuros. Atualmente, a interpretação de quem seria o proprietário dos bens conferidos ao trust, assim como demais aspectos, variam de acordo com a jurisdição e a estrutura específica do trust.

Em geral, a constituição de um trust implica na transferência da propriedade legal e plena de determinados bens por uma pessoa (o “settlor”) a outrem (o “trust”), com a finalidade de que tais bens sejam administrados por um terceiro (o “trustee”) em benefício de terceiros ou, em casos específicos, do próprio instituidor (os “beneficiários”), de modo revogável ou irrevogável.

No caso da MP 1.171/23, considerou-se apenas trusts instituídos por indivíduos e não aqueles instituídos por sociedades, os chamados “corporate trusts”.

Trust é um mecanismo pelo qual uma pessoa administra propriedades em benefício de outra pessoa. De acordo com a forma de trust escolhida, o settlor poderá determinar no ato de instituição do trust (“trust deed”) como e quando o patrimônio conferido ao trust ou os rendimentos dele provenientes serão administrados e disponibilizados pelo trustee aos beneficiários indicados.

Vale ressaltar que – Para a constituição do trust é imprescindível a transferência da propriedade dos bens que irão compor o seu patrimônio, deixando de integrar o patrimônio do settlor.

No entanto, as novas regras trazidas pela MP 1.171/23, em seu Capítulo IV, que trata “Dos trust no exterior”, distorcem o conceito de dual ownership, considerando como mantida a propriedade de bens e direitos atribuídos ao trust ainda em nome de seu instituidor ou em nome do beneficiário em caso de distribuição ou morte do instituidor, mesmo o beneficiário não tendo acesso à administração e/ou propriedade dos bens (que podem depender de algum evento futuro, ou mesmo nunca passarem a fazer parte do patrimônio do beneficiário. Ou seja, na realidade, distorce o instituto do trust por completo.

Se considerada a natureza de determinados tipos de trust, poder-se-ia verificar que o instituidor deixa de ser proprietário dos bens conferidos ao trust, e não tem acesso a tal patrimônio sequer para fazer face à tributação de que trata a MP 1.171/23.

Por outro lado, o mesmo pode acontecer com o(s) beneficiário(s) que depende(m) de eventos futuros para ter ou não acesso à propriedade e/ou frutos dos bens transferido ao trust, que ficam sob gestão do trustee e, algumas vezes, sob a influência de um protector (aquele que, historicamente, supervisiona o cumprimento da aplicação da vontade do instituidor refletidas nas regras do trust).

De acordo com a MP 1.171/23, que tem apenas o intuito de regular a tributação dos rendimentos auferidos por meio de trusts, a propriedade dos bens transferidos ao trust se mantém de titularidade do settlor, mesmo após a instituição do trust, ou dos beneficiários, mesmo sem a efetiva distribuição de parte ou totalidade de bens e/ou rendimentos do trust sem considerar que estes podem ainda não ter a propriedade dos bens que compõem o trust.

É interessante notar que há diferentes tipos de trust com características que os distinguem radicalmente entre si. Assim, não se pode fazer uma generalização. Por exemplo, podem ser instituídos trusts revogáveis ou irrevogáveis.

Nesta última hipótese, o instituidor jamais poderá reaver os bens atribuídos ao trust, que seguirão a destinação determinada no trust deed. Tal ponto foi totalmente desconsiderado pela MP 1.171/23, que parece se aproximar somente do conceito de trust revogável, em que o settlor pode reaver os bens atribuídos ao trust.

Além disso, os trusts podem ser discricionários ou não discricionários, a depender da possibilidade de o instituidor poder tomar decisões quanto à utilização dos rendimentos do trust, e por vezes dos bens conferidos ao trust. Outra característica que, infelizmente, não foi levada em conta pela MP 1.171/23. 

Caso convertida em lei, a MP 1.171/23 poderá incorporar, de modo definitivo, ao nosso ordenamento pátrio, um conceito bastante distorcido de trust com a finalidade precípua de dar maior alcance à esfera de sujeição de bens e direitos à tributação brasileira e com os prejuízos inerentes à internalização de um instituto estrangeiro de forma imprópria.

 

Fonte: ConJur | Imagem: Freepik

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