Iniciamos este ano de 2020 e lembranças da solenidade de formatura da Turma de 2002 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco ressurgem na memória a partir da visão do saudoso professor Goffredo Telles Jr. que, naquela oportunidade patrono da Turma, rememorou a Carta aos Brasileiros para trazer à tona as inigualáveis lições do Estado de Direito e o Estado de Fato.
Nas palavras do mestre, o Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos Direitos e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica.
É obediente ao Direito porque suas funções são as que a Constituição lhe atribui, e porque, ao exercê-las, o governo não ultrapassa os limites de sua competência. É guardião dos Direitos porque o Estado de Direito é o Estado-Meio, organizado para servir o ser humano, ou seja, para assegurar o exercício das liberdades e dos direitos subjetivos das pessoas. E é aberto para as conquistas da cultura jurídica porque o Estado de Direito é uma democracia, caracterizado pelo regime de representação popular nos órgãos legislativos e, portanto, é um Estado sensível às necessidades de incorporar à legislação as normas tendentes a realizar o ideal de uma Justiça cada vez mais perfeita.
Já o Estado de Fato resume-se à barbárie, àqueles Estados cujo Poder Executivo usurpa o Poder Constituinte, são sistemas subversivos, inimigos da ordem legítima, promotores da violência contra direitos subjetivos. Tudo porque são Estados contrários ao Estado Constitucional, que é o Estado de Direito, o Estado da Ordem Jurídica.
Pois bem. A par de tão valiosas lições que forjaram a nossa Constituição Cidadã de 1988, busquemos o julgado do Supremo Tribunal Federal realizado em março de 2017 em rito de repercussão geral – RE 574.706, em que ficou assentado que o ICMS, todo ele, ou seja, tanto a parcela a compensar quanto a parcela a recolher[1], em outras palavras, aquele ICMS destacado em nota fiscal, não se inclui na definição de faturamento para fins de incidência do PIS e da Cofins.
Estrondosa vitória dos contribuintes garantida pelo Guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, e protegida pelo Estado de Direito, logo se viu atacada por atos administrativos arbitrários do Poder Executivo, mais especificamente a Solução de Consulta Interna COSIT 13, de 2018, e o recente parágrafo único do artigo 27 da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil n. 1.911, de 2019, ambos sem qualquer amparo em lei, que determinaram severas restrições ao direito conquistado pelos contribuintes sob a pretensa justificativa de agir discricionariamente para proteger o interesse público.
O nobre professor Celso Bandeira de Mello nos ensina: “não se confundem discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois estará se comportando fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em consequência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente”. Portanto, ao desrespeitar os limites legais e os princípios estabelecidos, o ato administrativo deixa de ser discricionário, tornando-se arbitrário e consequentemente ilegal.
Ora, tendo o Supremo Tribunal Federal colocado uma pá de cal na pretensão do Estado brasileiro de continuar exigindo a inclusão do ICMS nas bases do PIS e da COFINS, não se conforma o Poder Executivo em obedecer a ordem do Poder Judiciário, insistindo em estratagemas certamente extraídos da dialética erística do filósofo alemão Arthur Schopenhauer em seu livro “Como Vencer um Debate sem Ter Razão”, para criar embaraços e constrangimentos aos contribuintes.
Criou-se, portanto, o Estado de Fato, onde o casuísmo da força opressora dos governantes busca se impor ao Estado de Direito, culminando em insegurança jurídica e desrespeito a coisa julgada, em total arbitrariedade, desvio de finalidade e afastamento dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência encartados no artigo 37 da Constituição Federal, preceitos fundamentais que deveriam ser fielmente observados pela Administração Pública.
Reparem que não apenas o Supremo Tribunal Federal chancelou que o ICMS a ser excluído das bases de cálculo do PIS e da COFINS é aquele destacado em nota fiscal, como todos os cinco Tribunais Regionais Federais do país, todas as suas Turmas e desembargadores[2], seguem essa cartilha, o que agrava ainda mais o desrespeito do Poder Executivo à ordem emanada do Poder Judiciário consubstanciado nos atos administrativos arbitrários outrora citados.
Reféns desse Estado de Fato e anacronismo jurídico, os contribuintes são lançados aos leões, sendo obrigados a enfrentar nesse ano de 2019 algo metaforicamente semelhante ao dilema de Sofia, que durante a Segunda Guerra Mundial foi obrigada por um soldado nazista a escolher qual dos dois filhos sobreviveria, sob pena de perder os dois. Resguardadas as devidas proporções, as empresas se veem hoje obrigadas a aproveitar o julgado favorável do Poder Judiciário e sofrer retaliações da Receita Federal ou abrir mão do seu direito.
Agrava ainda mais a situação das empresas o fato de que os auditores das companhias vem exigindo o reconhecimento do ganho em suas demonstrações financeiras e respectiva apuração de imposto de renda e contribuição social sobre o lucro líquido sobre tais ganhos, o que pode acarretar em obrigação de ter de devolver aos cofres públicos até 34% dos ganhos obtidos com a exclusão do ICMS das bases do PIS e da COFINS. Uma verdadeira odisseia.
Diante desse verdadeiro Estado de Fato preceituado nas valiosas lições do saudoso Professor Goffredo Telles Jr. na Carta aos Brasileiros, em que o Poder Executivo usurpa e corrompe o Estado de Direito contido no julgado do Supremo Tribunal Federal no âmbito do RE 574.706, desvirtuando as conclusões alcançadas pela Corte Suprema para não reconhecer o ICMS destacado em nota fiscal como quantum legítimo a ser excluído das bases do PIS e da COFINS, só resta aos contribuintes ou submeter-se aos desmandos e arbitrariedades da Receita Federal do Brasil ou ainda ter esperança no Poder emanado da Constituição Federal, socorrendo-se do Poder Judiciário em novos litígios para ver afastados os atos administrativos nulos e arbitrários consubstanciados na Solução de Consulta Interna COSIT 13, de 2018, e o recente parágrafo único do artigo 27 da Instrução Normativa da Receita Federal do Brasil n. 1.911, de 2019.
Quer-nos parecer que a Receita Federal do Brasil desconhece ou faz vista grossa ao brocardo jurídico “iura novit curia”, ou seja, o juiz conhece a lei.
[1] STF, RE 574.706, trecho do voto vencedor da Min. Carmen Lucia: “(…) Toda essa digressão sobre a forma de apuração do ICMS devido pelo contribuinte demonstra que o regime da não cumulatividade impõe concluir, embora se tenha a escrituração da parcela ainda a se compensar do ICMS, todo ele, não se inclui na definição de faturamento aproveitado por este Supremo Tribunal Federal, pelo que não pode ele compor a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da COFINS. (…)” grifos e negritos nossos
[2] TRF1, Quarta Seção, Desembargador JOSE AMILCAR DE QUEIROZ MACHADO, Embargos de Declaração na Ação Rescisória n. 1016304-62.2018.4.01.0000e-
TRF2, LETICIA DE SANTIS MELLO – 4ª Turma – 0011777- 32.2008.4.02.5101 (TRF2 2008.51.01.011777-2)
TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv – APELAÇÃO CÍVEL – 5000198-85.2018.4.03.6115, Rel. Desembargador Federal CECILIA MARIA PIEDRA MARCONDES, julgado em 19/09/2019, e – DJF3 Judicial 1 DATA: 26/09/2019
TRF4, AG 5029047-18.2019.4.04.0000, PRIMEIRA TURMA, Relator ROGER RAUPP RIOS, juntado aos autos em 02/10/2019
TRF5, PROCESSO: 08062957720194050000, AG – Agravo de Instrumento – , DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA LIMA, 2ª Turma, JULGAMENTO: 03/10/2019
Revista Consultor Jurídico – Por Ronaldo Rayes e Bruno Henrique Coutinho de Aguiar