Pagamentos móveis, uso massivo de dados, superapps, reinvenção da loja. Entenda como um mercado com PIB potencial de US$ 22 tri vem ditando tendências do setor para o resto do mundo

 

A China deve superar o varejo americano ainda neste ano. Projeção da eMarketer, consultoria global de pesquisa e tendências, aponta que as vendas chinesas devem atingir US$ 5,636 trilhões este ano – alta de 7,5% comparada a 2018 -, ante US$ 5,529 trilhões do concorrente ocidental, que crescerá "apenas" 3,3%.

Não é novidade que o mercado chinês, e a velocidade com que coloca as transformações em prática, já estão no radar global há pelo menos cinco anos.

Principalmente no que diz respeito ao new retail, o novo varejo, puxado principalmente por três gigantes globais da tecnologia: Baidu, Tencent e Alibaba. Ou BAT, para os iniciados.

Para quem ainda não ouviu falar do ecossistema chinês de negócios, são essas companhias nascidas no país, um mercado consumidor de mais de 300 milhões de consumidores que ascenderam à classe média com a abertura do mercado há aproximadamente uma década, que têm ditado as principais tendências do varejo local.  

"E por que não no resto do mundo, ao aliar tecnologia, inovação e disrupção muito além do Vale do Silício, ambiente que pensa inovação, enquanto a China executa", questiona Eduardo Yamashita, diretor de operações da GS&Gouvêa de Souza. 

Mas o que seria esse tal "ecossistema chinês de negócios"? Em resumo, é um modelo impactado por alta tecnologia, em que grandes companhias independentes criam negócios que interdependem de parceiros -no caso, pequenas empresas -, para criar valor.

Ou seja, é o resultado das união de competências das empresas que fazem parte desse universo, como o Alibaba com o AliExpress (exportações) e o Alipay (meios de pagamento), por exemplo. 

E esse resultado é o que de mais avançado esse new retail consegue oferecer: integração total de canais e de logística, uso intensivo de dados de bilhões de pessoas e meios de pagamento automatizados, que formam uma cadeia de valor única. E o melhor, com custos operacionais reduzidos.

Nada a ver, vale lembrar, com o antigo modelo de fazer negócios, de quando a China aspirava se tornar a indústria de manufatura do mundo. 

"Era um modelo baseado em tecnologia, mão de obra barata e preços baixos. O país cresceu e enriqueceu por essa matriz, mas sabia que esse não era um modelo sustentável", afirma Yamashita. "Quando a alta tecnologia, a internet das coisas e o 5G passaram a determinar o ritmo da economia, a China percebeu que não era mais tão competitiva." 

Para explicar esse salto de inovação que está ditando novos modelos de varejo, Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), diz que os chineses "pularam etapas", uma vez que nunca existiu um varejo físico forte no país, nem um consumo local efetivo para diminuir sua dependência do exterior. 

Por ter vivido de exportação durante muito tempo, pela lógica haveria uma abertura em massa de lojas físicas quando a China passou a desenvolver esse mercado de consumo. Mas o país percebeu que sua inflação imobiliária era muito grande, e então os novos players optaram por vender pelos canais digitais, associados ao consumidor chinês, altamente adeptos do uso de tecnologia, para impulsionar esse mercado.

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HEMA MARKET, DO ALIBABA: PREÇO COMPETITIVO, PAGAMENTO
COM RECONHECIMENTO FACIAL E ENTREGA EM 30 MINUTOS

Hoje, 30% de todo o varejo chinês é canalizado pela internet, ante 6% no Brasil, 18% na Inglaterra e 12% nos Estados Unidos, segundo Terra. "Quando você tem um varejo digital desse tamanho associado a lojas físicas, de fato existe um modelo diferenciado", diz. No mercado brasileiro, o Magazine Luiza é um exemplo modelar disso.

"Uma varejista que transforma a loja em um minicentro de distribuição para o cliente buscar o produto ou para, a partir da loja entregar, explica um pouco o fenômeno e o sucesso desse modelo", completa o presidente da SBVC. 

OMNICHANNEL EM ESCALA GLOBAL

Crescer rapidamente para não ser engolido pela concorrência. Essa é uma das principais diretrizes de empresários chineses como Jack Ma, o fundador do Alibaba, sem visar lucros, a princípio, mas apenas em reinvestir todos os ganhos no negócio nos primeiros anos para que ele continue a se desenvolver de forma sustentável.

Essa quebra de paradigma para conduzir os negócios, apresentada em evento recente da consultoria GS&MD sobre a China  ainda "enlouquece" empresários brasileiros, segundo Yamashita. Outro segredo dos chineses é a velocidade para colocar inovações em prática. 

Por lá, tudo é muito dinâmico e acontece "pulando etapas", como disse Terra. Os consumidores também ajudam: com o avanço dos pagamentos pelo celular, eles aposentaram de vez o dinheiro vivo. Também passaram praticamente direto do e-commerce para o mobile commerce. De quebra, os chineses também têm mais renda para gastar, adotam facilmente novas tecnologias e, diferentemente de outras nacionalidades, como os brasileiros, se preocupam pouco com a privacidade de seus dados. 

Se as tendências ditadas pela China ainda engatinham no varejo mundial, lá elas já são realidade. Entre as principais estão os pagamentos móveis. Com a alta tecnologia, a digitalização do consumidor e a consequente queda na circulação de papel-moeda, esse mercado alcançou uma penetração de 60%, segundo Yamashita.

"Em grandes cidades do porte de Xangai, por exemplo, ela chega aos 90%", afirma. 

A diferença com o Brasil é que, enquanto esse mercado passou por um transformação estrutural e criou um cadeia que envolve bancos, bandeiras de cartão e adquirentes, levando à tão falada "guerra das maquininhas", na China essa cadeia não existe. E virou o mercado de cabeça para baixo. 

"Quem domina são as empresas de pagamentos móveis, como AliPay e WePay, do Alibaba e da Tencent, e lá não tem taxa sobre o uso", diz consultor da GS&Gouvêa de Souza. "Elas só oferecem a plataforma; o importante são os dados."

O uso de dados baseado em inteligência artificial -outra das principais tendências vindas do varejo chinês – faz com que essas empresas consigam ter uma visão total desse consumidor, afirma Yamashita. "Em vez de cobrar taxas, elas sabem de maneira preditiva o que ele vai comprar, qual o modelo de valor e informações sobre ele.” 

"Esse uso massivo de dados auxilia na tomada de decisões, como no caso dos bancos, para oferecer crédito, e no varejo, para oferecer preço, promoção, oferta e sortimento", completa Eduardo Terra, da SBVC. 

Por último, sem dúvida, outra grande tendência é a reinvenção da loja, que personifica esse new retail e é integrada com os demais canais e com os pagamentos móveis.

Como exemplo, Yamashita cita a rede de supermercados Hema, do Alibaba Group, que provocou uma reviravolta até no comportamento do mercado imobiliário no país.

Enquanto nos Estados Unidos e na Europa as vendas online de supermercados não ultrapassam 3%, na China a modalidade já passou dos 60% de penetração com a ajuda do Hema: porque a experiência de compra online é muito boa, o preço é muito competitivo, o pagamento nos self-checkouts é por reconhecimento facial e, qualquer pedido feito online – inclusive de peixes vivos – é entregue de graça em até 30 minutos, num raio de 3 km da loja.  

"Mas eles só têm 100 lojas, porque a estratégia é converter lojas de bairro para sua bandeira", afirma Yamashita. "Ou seja, atrair milhões de lojas de bairro para os negócios deles é tão mais eficiente que eles não abrem em áreas com densidade demográfica grande: são as pessoas que procuram casa para morar perto de um Hema."

Outra grande tendência, que hoje já está disponível para mais de 800 milhões de consumidores chineses, são os superapps. Neles, há uma integração total entre redes sociais e mobile que se transforma em um grande canal de comercialização e interação com o consumidor em um único aplicativo. Ou seja, é o omnichannel implantado em escala global. 

"Toda a vida do consumidor vai para o varejo, dos pagamentos e investimentos às áreas de educação e operacionais para criar ofertas customizadas", diz Yamashita. "Milhares de consumidores já vivenciam esses superapps na China, e muitos varejistas só vendem via aplicativo: nem adianta entrar na loja", diz ele, que prevê que esses apps cheguem ao Brasil em menos de três anos.

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MAGAZINE LUIZA: LOJA VIRA MINICENTRO DE DISTRIBUIÇÃO,
SEGUINDO O CAMINHO DO MODELO CHINÊS DE ECOSSISTEMA

Porém, não está decretado que não haverá mais loja física, e sim que a integração tecnológica que vem da China chegou a um nível muito grande. Como o modelo baseado em delivery e pick-up da cafeteria Luckin'Coffe, de Pequim. Basta pedir, pagar pelo celular, e escolher onde buscar seu pedido.

"É uma conveniência para o consumidor que elimina o custo operacional de caixa para o lojista. No fim, o que sobra é uma experiência incrível, que não muda o relacionamento com a marca", diz o executivo.  

E OS PEQUENOS NEGÓCIOS?

O pequeno e o médio varejo são peças importantes no modelo de varejo chinês que está sendo replicado no resto do mundo, conforme dito anteriormente. Mas, se muitos ainda não se veem entrando nesse mundo digital, segundo Eduardo Terra, da SBVC, aos poucos, eles vão se abrindo para essa nova realidade, ao perceber que os grandes marketplaces que depois viram ecossistemas começam a ter outras funcionalidades, além de servir só como uma plataforma de vendas. 

"Eles começam a oferecer meios de pagamento, de crédito… é o que está ocorrendo com o Mercado Livre, o Magazine Luiza e a B2W no Brasil, que passaram a olhar isso como oportunidade, tentando formar o que chegaria próximo do modelo chinês de ecossistema", diz. Assim como o Alibaba. "Eles conectam os pequenos negócios em seu marketplace e acabam vendendo o estoque daquela loja para o mundo digital muito além do crossborder. Ou seja, direto para o consumidor."  

Eduardo Yamashita, da GS&Gouvêa de Souza, reforça que o pilar estratégico dos chineses é fornecer ferramental para esse pequeno e médio se tornar competitivo. E também cita o Alibaba, cujo objetivo não é ter lojas, mas usar o seu arsenal tecnológico para ampliar esse ecossistema. 

"Ao converter as mercadorias para o sistema dele, esses pequenos e médios lojistas passam a ter acesso a todas as suas  funcionalidades, como o delivery em 30 minutos ou a análise em tempo real do sortimento daquela loja para se relacionar melhor com o cliente", afirma. 

Em resumo, uma parcela relevante dessa disrupção do varejo passa pelo pequeno e médio negócio, para brigar ou pelo menos ser aliado dos gigantes que, para serem mais ágeis precisam dessa ajuda – caso da Rappie Mercado Pago, ou da Nubank, que recentemente recebeu aporte de cerca de US$ 200 milhões da Tencent. 

“Hoje é mais importante ser veloz e adaptável do que ter uma infraestrutura gigante, por isso as disrupções vão acontecer no pequeno e no médio varejo", diz Yamashita. "Mas eles têm que estar dispostos a mudar, senão morrem."   

Por Karina Lignelli