Gigantes da tecnologia ganham bilhões de dólares ao capturar dados de usuários. Um estudo exclusivo à DINHEIRO revela como Facebook, Google, Uber, entre outras, estão criando uma nova indústria digital explorando a sua privacidade
Como um novo petróleo, hoje, toda e qualquer pegada digital é o combustível para que essas empresas desenvolvam e entreguem produtos, serviços e anúncios precisamente personalizados. “Essas plataformas já conhecem os hábitos de saúde, de alimentação e as mais diversas preferências dos seus usuários”, diz Marcelo Crespo, sócio do Patrícia Peck Pinheiro Advogados. A pedido da DINHEIRO, o escritório produziu um estudo exclusivo que revela como essas gigantes, que figuram entre as empresas mais valiosas do planeta, estão coletando os seus dados para gerar receitas bilionárias. Detalhe: com o seu consentimento.
O estudo analisou os termos de uso dos serviços das empresas Facebook, Instagram, WhatsApp, Google, YouTube, Microsoft, LinkedIn, Uber, Twitter, Spotify e Tinder. A partir desse levantamento, foi possível identificar quais são as informações dos usuários capturadas por cada uma dessas companhias, bem como os pontos que podem ser considerados abusivos em suas políticas de privacidade. O assunto nunca esteve tão em destaque. Na semana passada, o presidente Michel Temer sancionou a primeira lei específica que trata da coleta, do armazenamento e da utilização de dados pessoais.
As normas seguem o padrão europeu, que entrou em vigor em maio, e possibilitam, por exemplo, que qualquer brasileiro solicite a consulta e a exclusão de suas informações armazenadas em bancos de dados de qualquer empresa com operações no País. “A economia de dados é o futuro. Ter uma regulamentação é essencial para assegurar que essa atividade flua de forma plena”, diz o deputado federal Orlando Silva (PCdoB), relator da lei brasileira. “E, ao mesmo tempo, é preciso garantir o respeito à privacidade do usuário, que é um direito básico da sociedade.”
Essas leis impactam diretamente na forma como as gigantes do mercado de bits e bytes ganham dinheiro. Nesse ramo, a empresa que talvez mais se destaque seja o Google. A companhia americana, que faz parte da holding Alphabet, avaliada em US$ 845 bilhões, coleta mais dados dos usuários do que apenas as pesquisas feitas por eles no famoso buscador. Essas informações, concedidas voluntariamente por quem aceita os termos de uso das plataformas da empresa, incluem nomes, datas de nascimento, gêneros, dispositivos usados na conexão, sites visitados, números de telefones, endereços de IP, e-mails enviados e recebidos pelo Gmail e até os anúncios com os quais os internautas interagem.
Tudo isso é explicado didaticamente nas políticas de privacidade da gigante de buscas. O que não está explícito é o que o Google efetivamente faz com esse verdadeiro dossiê. Os termos de uso limitam-se a informar que os dados podem ser utilizados para fins de publicidade, análises e o aprimoramento de serviços ofertados, além de poderem ser compartilhados com terceiros, sem especificar quem seriam esses parceiros. A companhia também se reserva o direito de permanecer com as informações capturadas mesmo que o usuário em questão não utilize mais os seus serviços.
A ALMA DO NEGÓCIO Isso explica, por exemplo, como o Google consegue direcionar tão cirurgicamente seus anúncios. Que atire a primeira pedra quem nunca se deparou com uma propaganda online – exibida em qualquer site – que guarde alguma relação com um termo pesquisado no buscador. Se você pesquisar, por exemplo, “como é morar em Copacabana”, é provável que seja bombardeado por anúncios relacionados com a venda de imóveis no bairro carioca. “A análise de dados é importante porque ajuda a entender como o usuário se comporta”, diz André Miceli, professor e coordenador do MBA em marketing digital da Fundação Getúlio Vargas. “Dessa forma, os anúncios ganham uma segmentação e uma precisão maior e, por consequência, geram mais valor para os anunciantes dessas plataformas.” Se eticamente a prática é questionável, nos números, ela é uma verdadeira mina de ouro. Dos US$ 110,8 bilhões faturados pela gigante de buscas em 2017, uma fatia de US$ 95,3 bilhões foi obtida com publicidade.
Com uma coleta extensa de informações, o Facebook é outra companhia que vê seu negócio cada vez mais fundamentado nos dados de seus usuários. A empresa, avaliada em US$ 503 bilhões, só incorporou a publicidade a partir de 2012. Mas, ao que tudo indica, já nasceu sabendo do poder que as informações capturadas por sua plataforma poderiam gerar. Uma troca de mensagens de Mark Zuckerberg com um colega de universidade, em 2004, veio à tona seis anos depois, em uma reportagem publicada no site americano Silicon Valley Insider. O diálogo revela que o fundador do Facebook, plataforma usada atualmente por 2 bilhões de pessoas no mundo, tinha em seu banco de dados mais de 4 mil e-mails, fotos e endereços de estudantes de Harvard, a partir dos cadastros feitos por esses universitários na então jovem rede social criada por ele em um dormitório estudantil.
Questionado pelo amigo sobre o assunto, Zuckerberg zomba: “As pessoas simplesmente os enviam para mim, eu não sei por que. Eles ‘confiam em mim’. Bando de idiotas.” Para Daniel Domeneghetti, CEO da E-Consulting, os usuários têm, de fato, sua parcela de responsabilidade nessa relação. “As pessoas não leem os termos”, afirma. Vale ressaltar que, na maioria dos casos, os termos são calhamaços de documentos com linguagem jurídica, que desencorajam a leitura. “O elo de confiança para dar o consentimento a essas plataformas é o irmão, o amigo, que já está ali, e não a empresa em si.”
Zuckerberg, é verdade, se desculpou pelo posicionamento que considerou imaturo e irresponsável. Isso não significa, contudo, que abdicou das informações que simplesmente chegavam gratuitamente às suas mãos. De acordo com o estudo encomendado pela DINHEIRO, a rede social se reserva o direito, por exemplo, de transferir a licença da guarda dos dados para terceiros. Essa licença, aliás, é considerada pelo escritório de advocacia Patrícia Peck Pinheiro como “muito ampla”, pois vai além do que a empresa realmente precisaria para operar o serviço. De qualquer forma, o modelo fez com que a empresa – dona ainda do mensageiro instantâneo WhatsApp e do álbum de fotos virtual Instagram – ganhasse US$ 39 bilhões com publicidade em 2017. O montante representa quase que a totalidade do faturamento anual da companhia de Menlo Park no ano passado, de US$ 40,6 bilhões.
A indústria de big data, termo usado para se referir a captura e a análise de uma grande quantidade de dados, deve movimentar US$ 168,7 bilhões no mundo neste ano, conforme um estudo realizado pela consultoria americana Frost & Sullivan. Mas, ao mesmo tempo em que gigantes da tecnologia ganham fortunas com informações dos usuários, elas também correm o risco de pagarem um preço alto. Em 2016, a Uber teve 57 milhões de dados roubados de sua plataforma por hackers. Em março desse ano, outro escândalo. A consultoria britânica Cambridge Analytica usou indevidamente dados de 87 milhões de usuários do Facebook na tentativa de manipular as eleições americanas e o referendo do Brexit. O caso chegou a fazer com que a rede social perdesse mais de US$ 90 bilhões em valor de mercado e colocou em xeque os limites morais, éticos e legais da prática.
A falta de transparência é outro ponto que precisa ser levado mais a sério por esses barões digitais. Em abril, um grupo formado por 23 entidades de defesa das crianças registrou uma denúncia na Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos acusando o Google de coletar dados de crianças, sem o consentimento e o aviso direto aos pais. A suposta captura ocorreria por meio do YouTube, a plataforma de vídeos da companhia americana, e teria como finalidade o envio de anúncios específicos a esse público. Em sua defesa, a empresa alegou que o serviço é voltado a usuários maiores de 13 anos.
Os termos nebulosos e os riscos à privacidade não estão restritos ao Facebook, ao Google e aos demais negócios dessas gigantes, como o WhatsApp, o Instagram e o YouTube. E vão além das práticas relacionadas diretamente à publicidade. É o caso do LinkedIn, rede social de propriedade da Microsoft, que gera boa parte de suas receitas a partir das assinaturas de profissionais e empresas. Uma das cláusulas consideradas abusivas refere-se ao encerramento da conta na plataforma. Ela estabelece que as informações compartilhadas até então pelos usuários seguirão visíveis mesmo após o perfil ser deletado, o que abre a possibilidade, inclusive, de serem exibidas nos serviços de terceiros.
A Uber, avaliada em US$ 72 bilhões e com uma receita de US$ 37 bilhões em 2017, gerada, majoritariamente, pelas taxas cobradas por cada corrida, também tem políticas que suscitam questionamentos. Uma delas estabelece que ao aceitar os termos propostos, o usuário concede uma licença global, perpétua, irrevogável, transferível e isenta de royalties para que o aplicativo possa explorar das mais variadas formas os conteúdos produzidos por aquela pessoa nas interações com a empresa. “É um direito do usuário revogar seu consentimento a qualquer tempo”, diz Crespo.
O estudo destaca outros componentes críticos. O Twitter, o YouTube e a Microsoft, por exemplo, podem modificar os termos de consentimento a qualquer momento, sem que precisem avisar previamente os usuários. O Spotify utiliza serviços de terceiros e compartilha os dados dos usuários com parceiros comerciais. O WhatsApp, por sua vez, não garante que as informações fornecidas nessas regras sejam “exatas, estejam completas ou sejam úteis”. A Microsoft também informa que os dados coletados podem ser armazenados em qualquer lugar do mundo.
Assim como o Tinder e o Instagram. “Essas informações podem ser enviadas a países nos quais as leis de proteção de dados sejam mais brandas”, afirma Crespo. “A combinação de tantos dados e fontes traz riscos que estamos apenas começando a abordar”, diz Tarun Wadhwa, CEO da consultoria americana Day One Insights e professor convidado da Carnegie Mellon University. “Os usuários não têm consciência das barganhas que estão fazendo para utilizar esses serviços.”
ENTRE A CRUZ E A ESPADA Encontrar um equilíbrio nessa relação não é uma missão fácil. “O grande desafio de uma política de privacidade é dar clareza para o titular dos dados sem escancarar o seu modelo de negócios para a concorrência”, diz Crespo. A opinião é compartilhada por outro especialista. “É como perguntar a fórmula da Coca-Cola. Entra no campo do segredo ‘industrial’. E os mercados entendem que é melhor correr esse risco do que sufocar a competição e o crescimento da economia”, afirma Domeneghetti.
À parte dos segredos de cada empresa, algumas aplicações baseadas nos dados coletados já são mais conhecidas. A mais comum é o desenvolvimento ou melhoria de produtos e serviços. Além de recomendar artistas similares àqueles ouvidos habitualmente pelo usuário, o Spotify, por exemplo, está testando um algoritmo para sugerir músicas de gêneros que, a princípio, dificilmente figurariam nas playlists daquela pessoa. A conexão é feita por trechos específicos dessas canções, que possuem paralelos com o gosto musical do usuário. No geral, abordagens semelhantes são adotadas por várias dessas plataformas. “Essas informações são valiosas para que essas empresas sigam dominando o mercado”, diz Regina Cantele, coordenadora acadêmica dos cursos de MBA em Engenharia de Dados da FIAP.
Na trilha aberta pelo big data, o potencial de desenvolvimento de produtos e serviços é imenso. E, para os especialistas consultados pela DINHEIRO, o pacote à disposição não traz, necessariamente, apenas ofertas com conseqüências negativas para os usuários. Um exemplo citado é o caso de seguradoras que, a partir de dados coletados por um aplicativo de GPS, como o Waze, podem oferecer uma apólice mais adequada – e, em alguns casos, mais barata – ao perfil do motorista em questão. Ainda no campo dos aplicativos de transporte, outra possibilidade é a sugestão de um trajeto que inclua uma determinada loja que atenda precisamente aos hábitos de compra do condutor. A área da saúde é mais uma frente. Já existem pesquisas sendo realizadas com o auxílio da inteligência artificial e que reúnem prontuários de milhares de pacientes em todo o mundo, sob o consentimento. A ideia é reunir uma massa crítica de casos para avançar no diagnóstico e tratamento de doenças, como o câncer. A americana IBM, com a plataforma Watson, é uma das que estão investindo nessa frente.
Seja qual for a aplicação, os especialistas alertam que a questão central é o usuário conhecer claramente as regras do jogo e ter em mãos elementos suficientes para decidir se está disposto a trocar suas informações por aquilo que enxerga ser um benefício. Afinal, a princípio, essa escolha é dele. Mas, em uma sociedade no qual a tecnologia se torna cada vez mais onipresente na vida das pessoas, até mesmo a opção por exercer esse poder tende a ser um desafio. “Estamos caminhando para um cenário de cidades inteligentes, onde tudo estará conectado e monitorado”, diz Regina. “Você pode até não estar em nenhuma rede social ou plataforma, mas existirão outros dispositivos que seguirão a sua jornada.” Daniel Domeneghetti também enxerga pouco espaço para a existência de eremitas totalmente isolados dessa avalanche digital. “Hoje, é quase impossível preservar totalmente a sua privacidade. Mesmo que você não se exponha nas redes, alguém fará isso por você.”
O QUE DIZEM AS EMPRESAS Procurada pela DINHEIRO, a assessoria do Uber afirmou que teve sua política de privacidade atualizada globalmente em maio para adequá-la às normas europeias, e disse que segue as leis de cada país onde opera. Também por meio de nota, a assessoria do Twitter informou que mantém informações detalhadas em sua política de privacidade e que a empresa “acredita que os usuários devem saber quais tipos de informação compartilham com a companhia e como ela os utiliza”.
O departamento jurídico da Microsoft afirmou que “a privacidade é um direito humano fundamental” e que “os dados são sempre do cliente e, por isso, sempre damos a ele total controle para decidir a forma como eles serão utilizados.” As assessorias das empresas Facebook e WhatsApp não responderam a questionamentos enviados por e-mail. Os representantes das empresas Tinder e Spotify não se manifestaram sobre o assunto. Já as assessorias do Google, do YouTube e do Instagram, não responderam aos contatos da reportagem.