O amadurecimento das discussões judiciais sobre a possibilidade de o Judiciário prorrogar o prazo de pagamento de tributos federais como medida de justiça para o alívio da crise econômica causada pela pandemia da Covid-19 [1] acabou por firmar jurisprudência majoritariamente contrária ao pleito dos contribuintes, afora as já diversas decisões do Supremo em suspensões de segurança, que suspenderam decisões liminares favoráveis que haviam sido concedidas aos contribuintes [2].
As decisões de mérito que negam a prorrogação geralmente apresentam como principal argumento o fato de que a prorrogação do prazo para pagamento de tributos seria uma moratória, e como a instituição de moratória é matéria privativa de lei (artigo 152 do CTN), seria vedado ao Judiciário conceder uma moratória tributária, pois estaria usurpando papel do legislador [3].
E não é só a jurisprudência: a doutrina, praticamente unânime, também entende que a prorrogação do prazo de pagamento de tributo é uma moratória, e que assim exige lei [4].
Entretanto, esse entendimento está equivocado, porque, afinal, a prorrogação de prazo de vencimento de um tributo não é uma moratória. E, assim, pode ser concedida por decisão judicial, desde que dentro de parâmetros jurídicos, não arbitrários. Veja-se a seguir como se chega a essa conclusão, a partir da interpretação literal e sistemática do CTN e da Lei Complementar nº 24/1975.
Prorrogação de prazo de pagamento de tributo (artigos 97 e 160 do CTN)
A prorrogação de prazo de pagamento é uma espécie de alteração do prazo de vencimento do tributo, que ocorre antes de extinto o prazo original. A prorrogação abrange um prazo não vencido [5]. Portanto, se dá antes da mora. E, assim, prorrogação ocorre antes de iniciada a exigibilidade administrativa. E a fixação do prazo de pagamento do tributo, assim como alteração ou prorrogação do prazo, não é matéria para a qual se exija a legalidade estrita.
O artigo 97 do CTN confirma isso, pois, ao explicitar o alcance da legalidade tributária não prevê que o prazo de pagamento ou sua prorrogação devam ser realizados por lei.
Nesse sentido vai o Supremo Tribunal Federal, que já decidiu que a fixação e a alteração de prazo para pagamento de tributo não se submete à legalidade estrita, podendo ser realizada por ato infralegal [6]. E assim também entende o STJ, interpretando o artigo 97 do CTN [7].
O prazo pode eventualmente ser fixado em lei, que pode delegar sua alteração para um ato infralegal. Aplicando essa regra, em relação aos tributos federais, a Lei nº 7.450/1985 (artigo 66) delega ao ministro de Estado da Fazenda fixar o prazo para vencimento de receitas compulsórias federais.
Reforça essa conclusão o artigo 160 do CTN, ao prever expressamente que o prazo de pagamento do tributo, caso não seja previsto pela “legislação tributária” (atos legais ou infralegais, conforme autoriza o artigo 96 do CTN), será de 30 dias depois da data em que se considerar o sujeito passivo notificado do lançamento do tributo. Ou seja, o artigo 160 admite que o prazo de pagamento seja previsto (e antecipado ou prorrogado) por atos infralegais.
Note-se que não há limite expresso para a extensão temporal da prorrogação do prazo, ou data-limite máxima para o novo vencimento do tributo. Ou seja, a data de vencimento do tributo em tese pode ser prorrogada por 30, 90 dias ou até mais, sem se confundir com uma moratória. Porém, como configura um benefício tributário, a depender do tributo, poderá haver limitação da prorrogação dentro de prazos que se considerem razoáveis para não confundir a prorrogação com verdadeira isenção, parcelamento, ou outra figura que dependa de lei.
Na prática, por analogia, em muitos casos o legislador segue como referência o prazo de 90 dias do artigo 150, III, “c” da CF/1988, que é usado como principal prazo de anterioridade para vigência de novos tributos ou de majorações. É assim considerado um prazo não aleatório, baseado na Constituição, e razoável para que o contribuinte possa se preparar para novo ônus tributário. Disso resulta a ideia de que diante de certas circunstâncias (exemplo: calamidade), que possam surpreender o contribuinte despreparado, a prorrogação do prazo de pagamento por até 90 dias é fundamentada.
No caso do ICMS, por exemplo, a prorrogação do prazo de vencimento do imposto não pode resultar em prazos superiores aos fixados por convênios entre os Estados, e, conforme tais convênios, a prorrogação não tem excedido aos 90 dias.
Moratória tributária (artigo 152 do CTN)
A moratória tributária é hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, conforme artigo 151, I, do CTN. Note-se que essa exigibilidade surge após o vencimento do prazo estabelecido para pagamento, pois essa exigibilidade é a possibilidade de a Administração tributária realizar atos de cobrança, para exigir o tributo. Antes de vencido o prazo, a Administração não pode cobrar, porque não há mora. Após a mora, surgida a exigibilidade, a moratória pode suspendê-la. Assim, moratória se aplica a débito em mora, já vencido, para o qual se esgotou o prazo de pagamento.
Moratória implica em perdoar a mora, suspendendo a exigibilidade administrativa do tributo, vedando sua cobrança pela Administração. A moratória concede um novo prazo para pagamento do tributo. É assim diferente da prorrogação de prazo.
Moratória deve ser instituída por lei, porque é necessária lei para dispensar a autoridade administrativa de efetuar a cobrança do tributo no caso de mora, já que a atividade de cobrança é obrigatória ao agente público e vinculada à lei, conforme artigos 3º e 142 do CTN.
A possível confusão entre as duas figuras (moratória e prorrogação) é fruto da ausência de uma definição clara do que é moratória nos artigos que tratam dela no CTN (artigos 152 e seguintes). Essa ausência de definição foi uma opção do projeto do CTN, que acabou por inserir nos artigos 152 e seguintes a moratória como suspensão da exigibilidade do crédito tributário, sem conceituar que seria reabertura de prazo esgotado (em mora). De outro lado, a redação do artigo 152 do CTN não afirma que prorrogação de prazo é o mesmo que moratória. Fica ali a dúvida, mas, outros dispositivos do CTN confirmam que se tratam de normas distintas (a moratória e a prorrogação).
Quando da elaboração do projeto do CTN, em 1954, houve proposta parlamentar no sentido de que o artigo 152 diferenciasse claramente a hipótese de prorrogação de prazo de pagamento de tributo (que não depende de lei) em relação à hipótese de instituição de moratória (que depende de lei) [8], mas essa distinção foi rejeitada no projeto. O relator, o jurista Rubens Gomes de Sousa, justificou-se afirmando (em equívoco) que “toda prorrogação de prazo de pagamento configura, a rigor, moratória”. Mas essa equivalência desejada por Rubens não ficou expressa na redação do artigo 152, que foi mantida sem definição, e assim foi aprovada anos depois, em 1966. Entretanto, teria sido mais acertado definir um conceito de moratória no artigo 152 do CTN, evitando dúvidas.
O artigo 154 do CTN confunde moratória com prorrogação de prazo de pagamento?
Certa dúvida poderia trazer o artigo 154 do CTN, acerca do alcance da moratória. Será que a moratória atingiria créditos tributários cujo prazo de vencimento ainda não findou? Veja-se o artigo:
“Art. 154. Salvo disposição de lei em contrário, a moratória somente abrange os créditos definitivamente constituídos à data da lei ou do despacho que a conceder, ou cujo lançamento já tenha sido iniciado àquela data por ato regularmente notificado ao sujeito passivo.”
Veja-se abaixo a análise de cada uma das partes desse artigo, sobre a alcance da moratória.
Em regra, a moratória “abrange os créditos definitivamente constituídos”
Logo no início da redação, quando o artigo 154 diz que a moratória só abrange os “créditos definitivamente constituídos”, se refere àqueles formalizados por lançamento ou ato equivalente e cujo prazo de pagamento já se esgotou, estando pendentes de cobrança judicial. Isso também é esclarecido pelo artigo 174 do CTN quando define o que é “crédito definitivamente constituído” [9].
Aqui estão abrangidas hipóteses de créditos cuja exigibilidade se dá após lançamento de ofício, ou por declaração, nos quais o sujeito passivo é notificado para pagar, esgota-se o prazo, e surge a mora.
Moratória também se aplica aos “créditos cujo lançamento já tenha sido iniciado”
É importante esclarecer quanto à segunda parte do caput do artigo 154 do CTN, quando afirma que a moratória também se aplica ao crédito tributário cujo lançamento já tenha sido iniciado àquela data [da lei da moratória] por ato regularmente notificado ao sujeito passivo. Nesse caso, a moratória se aplicaria a crédito cujo prazo de pagamento ainda não se esgotou? Não. Esse “lançamento que já tenha sido iniciado” é o lançamento por homologação do Fisco, feito apenas para verificar a apuração e o pagamento que já deveriam ter sido realizados pelo sujeito passivo, e será acompanhado de aplicação de penalidade se cabível (artigo 150, §3º).
“Salvo disposição de lei em contrário”
Uma última dúvida. Tendo em vista a possibilidade de lei que institua moratória dispor em sentido contrário às regras do artigo 154 do CTN, conforme autoriza o próprio artigo, isso permite que a lei aplique a moratória sobre crédito tributário cujo prazo de pagamento não venceu ainda? Ou seja, a lei da moratória realiza simples prorrogação de prazo de pagamento? A resposta é: não.
Essa abertura de exceção no início do artigo 154 do CTN apenas diz respeito à moratória poder alcançar excepcionalmente créditos tributários sujeitos ao lançamento por homologação e que ainda não foram descobertos pelo Fisco, ou seja, estão inadimplidos (em mora), porém, ainda não estão no conhecimento do Fisco.
Essa exceção também alcança créditos cuja exigibilidade está mais adiantada, ou seja, a lei da moratória pode abranger também créditos já em exigibilidade judicial (execução fiscal). Nesse caso excepcional, a moratória suspende também o processo judicial de execução fiscal.
Portanto, o texto do artigo 154 não afirma que moratória possa alcançar obrigação tributária com prazo de pagamento ainda em aberto: não identifica a moratória como uma prorrogação de prazo.
Interpretação literal e sistemática dos arts. 152, 97, 160 e 154 do CTN
Note-se que a interpretação aqui realizada não contraria a literalidade dos artigos do CTN, e assim não contraria o artigo 111 do mesmo Código, que exige interpretação literal sobre esse tema. E quanto à prorrogação do prazo para pagamento de tributo, ela está longe de configurar uma isenção.
Moratória dispensa juros de mora: isso não a confunde com prorrogação de prazo
Quem ler o caput do artigo 155 do CTN concluirá que a moratória em regra dispensa os juros de mora sobre o débito. Isso não caracterizaria a moratória como prorrogação de prazo de pagamento? A resposta é negativa. A dispensa de juros de mora é apenas um benefício à reabertura de prazo de tributo, e bem por isso exige lei, na moratória. O STJ não pensa assim, e acabou por equiparar moratória e prorrogação de prazo de vencimento [10], equivocando-se.
A norma geral do artigo 10 da LC nº 24/1975 e os convênios Confaz sobre calamidades
A distinção entre moratória e prorrogação de prazo de pagamento de tributo ficou expressa em norma geral, com o mesmo status jurídico do CTN, por força da Lei Complementar nº 24/1975. Tal lei, ao tratar do regime de benefícios fiscais, fixados por convênios em matéria de ICMS, previu:
“Art. 10 – Os convênios definirão as condições gerais em que se poderão conceder, unilateralmente, anistia, remissão, transação, moratória, parcelamento de débitos fiscais e ampliação do prazo de recolhimento do imposto […].”
Os convênios também diferenciam moratória e prorrogação de prazo de pagamento, por exemplo: Convênios ICMS 181/2017 e 43/2020. E o Convênio ICMS 169/2017, que inclusive trata de calamidade pública, estabelece:
“Cláusula quinta. Quanto à moratória e ao parcelamento, é facultado: I – reabrir o prazo de pagamento do imposto vencido, sem quaisquer acréscimos, aos sujeitos passivos vítimas de calamidade pública […].
Cláusula sexta. Quanto à ampliação de prazo de pagamento do imposto, fica permitido dilatar: […].”
Legislativo e Executivo reconhecem a distinção
O Poder Legislativo e o Executivo diferenciam prorrogação de prazo e moratória.
Assim, para alterar/prorrogar o prazo de vencimento de tributos de contribuintes atingidos por calamidades públicas, o Executivo usa atos administrativos. Exemplos: Portaria MF nº 12, de 20/1/2012; Portaria MF nº 494, de 28/10/2011; Portaria RFB nº 218, de 30/1/2020. Ora, se a prorrogação do vencimento de tributos dependesse da edição de lei (como moratória), essas portarias seriam ilegais e inconstitucionais. Mas, como se viu, elas não são.
Já para instituir moratória, abrangente de créditos tributários já vencidos e suspender a mora, o Poder Legislativo edita leis que se reportam a débitos passados. Exemplos: Lei nº 9.964, de 10/4/2000, Lei nº 10.522/2002, e Lei nº 11.941, de 27/5/2009.
Conclusão
Como se viu, a prorrogação do prazo de vencimento de tributo não se confunde com moratória de débitos. A moratória só se aplica ao crédito tributário em mora, não pago no vencimento; a prorrogação se aplica aos créditos ainda não vencidos. Consequentemente, a prorrogação do prazo de vencimento não precisa ser realizada por lei, porque não é moratória.