Ao longo do ano passado, diante da queda na arrecadação — um dos efeitos diretos da pandemia e de seus impactos na atividade econômica —, o governo de São Paulo anunciou uma série de medidas de austeridade, visando a cortar custos e reforçar o orçamento do estado. Já em abril, por exemplo, foram publicadas medidas relacionadas a redução de custeio da máquina pública, suspensão de benefícios para funcionários públicos e de concursos.
Em outubro, por sua vez, a Lei nº 17.293/2020 foi decretada. Surgida a partir do Projeto de Lei 529/2020, ela propõe, em linhas gerais, a redução de incentivos fiscais relacionados ao ICMS e IPVA, além da extinção de estatais e da implantação de um programa de demissão incentivada envolvendo cerca de 5,6 mil funcionários públicos do estado.
Alvo de muitas críticas da sociedade civil e de frentes parlamentares — o PL 529/2020 motivou, inclusive, uma união inédita entre PT, Psol, Partido Novo e PSL para a contenção temporária do projeto — por, entre outros pontos, aumentar, ainda que via redução de incentivos, o peso dos tributos para uma série de contribuintes em um período de crise econômica e de aumento do desemprego, a Lei nº 17.293/2020 abre espaço para uma discussão sobre capacidade contributiva e da própria ideia de justiça tributária e dos limites para a majoração da carga tributária de um estado ou país.
Pressão da sociedade civil e revogação do aumento do ICMS para alguns setores
Antes de entrarmos na análise desses conceitos, é importante ressaltar que em 15 de janeiro deste ano o governo de São Paulo publicou medida no Diário Oficial revogando o aumento do ICMS para os setores de insumos agropecuários, hortifrúti, fornecedores de energia e de medicamentos genéricos.
Como admitido pela equipe do governador João Doria, a revogação dos aumentos foi um movimento visando atender “às solicitações da Frente Parlamentar da Agropecuária da Assembleia Legislativa e representantes de entidades setoriais da sociedade civil”, além de proteger a produção de alimentos e medicamentos, que, com o aumento, afetaria, sobretudo, a população mais pobre do estado.
A Fiesp foi outro órgão importante da sociedade civil que se manifestou contra a redução de incentivos relacionados ao ICMS e inclusive recorreu ao Poder Judiciário, apontando, em nota para a imprensa, que o aumento do imposto trará “resultados desastrosos para a economia paulista” dentro do cenário de pandemia vivido pelo estado.
Justiça tributária como tendência?
A reação da sociedade civil é um ponto de partida interessante para discutirmos a ideia de justiça tributária. Afinal, faz sentido reduzir incentivos ou aumentar a carga tributária em um período de crise econômica? Que critérios devem ser adotados neste contexto?
Um princípio interessante e que pode guiar as respostas para essas questões envolve o conceito de capacidade contributiva, expresso na Constituição Federal através do Artigo 145, § 1º. Diz o trecho:
“Artigo 145 — A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes impostos:
§ 1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado a administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Em outras palavras: é premente que os Estados observem a capacidade do contribuinte em quitar seus impostos, principalmente quando são analisadas questões como majoração de tributos, redução de incentivos ou decretos que, em essência, hão de aumentar o peso da carga tributária para o contribuinte.
Nesse sentido, é, de fato, passível de questionamento e reação da sociedade civil, um movimento de redução de incentivos fiscais dentro de um contexto de pandemia e de queda na atividade econômica — sobretudo para alguns setores que foram mais afetados pela crise.
Sobre esse ponto, é interessante observar ainda que a ideia de justiça tributária vem sendo difundida em outras economias e parece uma tendência importante dentro do ambiente tributário global contemporâneo.
Na União Europeia, por exemplo, há uma vasta discussão sobre uma taxação mais ampla de gigantes da tecnologia, visando, nas palavras da EU, a “garantir que todas as multinacionais paguem a justa parte que lhes cabe”, em face do avanço da economia digital e tendo em vista a justiça, transparência tributária e o combate a concorrência desleal.
Equilíbrio e limites para o aumento de impostos
Diante de todo esse ambiente, é possível concluir que o Brasil já conta com uma base normativa que fundamenta a justiça tributária, uma vez que o princípio da capacidade contributiva é um norte que, se seguido pelos municípios e estados e pela União, pode conter discrepâncias e um peso tributário excessivo para o contribuinte.
Por outro lado, a não observância desse princípio — como parece ter ocorrido, ainda que em um grau indireto, no corte de incentivos relacionados ao ICMS pela Lei nº 17.293/2020 do governo de São Paulo, em plena pandemia e dentro do quadro de arrefecimento econômico do Estado — é um ponto que exige atenção e preocupa, pois, além da desproporção entre peso dos tributos x poder de geração de receita por parte das empresas; ela favorece um clima de insegurança tributária, haja visto os recuos que governo pode (como já o fez para alguns setores) se ver obrigado a tomar.
Dito isso, além da capacidade contributiva, o bom senso e o tino político dos governos e dos legisladores são essenciais quando pensamos nos limites para o aumento de impostos. Infelizmente, esses itens não parecem estar disponíveis em abundância no país.