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Uma decisão publicada pelo STF no último dia 18 de dezembro causou muita dor de cabeça nos contribuintes de ICMS que possuem valores em aberto perante o fisco estadual.

Segundo o Supremo, passa a configurar delito contra a ordem tributária o não pagamento de ICMS declarado por contribuinte, destaca-se, mediante conduta contumaz e com dolo de apropriação, e cujo ônus tenha sido repassado ao consumidor final.

O Relator, Ministro Luis Roberto Barroso, para fins de definição preliminar do conceito de “devedor contumaz”, afirmou que a decisão não afeta “quem deixou de pagar o ICMS eventualmente num momento de dificuldade, ou pulou um mês, dois meses, até três meses”, mas, sim, “o devedor contumaz, que não paga quase como uma estratégia empresarial, que lhe dá uma vantagem competitiva que permite que ele venda mais barato do que os outros, induzindo os outros à mesma estratégia criminosa”.

A parte final do exposto pelo Ministro deixa clara que a conduta dolosa para com terceiros se refere a inobservância de uma competitividade leal, no entanto, não delimita a atuação do devedor frente à necessidade de deixar de pagar o imposto “num momento de dificuldade” e também não trata do critério temporal relacionado a inadimplência, que pode durar um, dois ou até mesmo vários meses ou anos.

Primeiras impressões e necessidade de regulamentação

Fundamental, nesse primeiro momento, a necessidade de regulamentação do conceito de “devedor contumaz”. Ora, se o inadimplemento do imposto pelo período de até três meses não deve ser considerado crime, conclui-se que a conduta criminosa restaria tipificada no quarto mês? Tal premissa literal não parece razoável e merece atenção regulatória.

Segundo ponto refere-se a presunção de que o contribuinte que destaca o ICMS próprio na Nota Fiscal e deixa de recolhê-lo aos cofres públicos está incorrendo em apropriação indébita, posto que a norma do tipo penal, define como conduta criminosa “(…) deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo (…)”.

Nesse sentido, o STJ definiu em agosto de 2018, que a “interpretação consentânea com a dogmática penal do termo “descontado” é a de que ele se refere aos tributos diretos quando há responsabilidade tributária por substituição, enquanto o termo “cobrado” deve ser compreendido nas relações tributárias havidas com tributos indiretos (incidentes sobre o consumo). O Superior Tribunal encerrou esclarecendo que “não possui relevância o fato de o ICMS ser próprio ou por substituição, porquanto, em qualquer hipótese, não haverá ônus financeiro para o contribuinte de direito”.

Tal detalhamento também merece atenção regulamentar no sentido de esclarecer, uma vez distintos os responsáveis pelo recolhimento efetivo do ICMS – a exemplo do instituto da substituição tributária – ante a presença de contribuintes de direito e de fato, ante a presença de repasse ou não do recolhimento ao consumidor final e ante a existência ou não de ICMS a pagar no final do período de apuração.

Um terceiro ponto e não menos importante que deve ser avaliado em norma regulamentadora refere-se à retroatividade do referido julgado quando colocado frente a existência ou não de inscrição do débito em dívida ativa – visto que a norma penal apenas estabelece como elemento do tipo a “ausência do recolhimento”.

Desde já estão em andamento Projetos de Lei que pretendem regulamentar alguns dos itens acima.

A Recuperação Judicial

A despeito da polêmica necessidade de regulamentação da tese firmada pelo STF, como brevemente exposto e cujo tema não há pretensão de acima encerrar, o fato consolidado é que faz parte do tipo penal do inciso II, do art. 2º da Lei 8.137, o não recolhimento de ICMS declarado – quando caracterizada conduta contumaz e o dolo de apropriação do devedor.

Traçadas as premissas acima, podemos visualizar um cenário delicado para as empresas que pretendem aderir ao instituto da Recuperação Judicial.

Isso porque as empresas que estão em grande dificuldade financeira – e visualizam a Recuperação Judicial como uma chance de manter sua força produtiva – por diversas vezes vêem-se obrigadas por força de planejamento operacional e financeiro, configurar como devedora de fornecedores, de empregados, de instituições de crédito e do fisco, seja estadual, municipal ou federal. Resta a essas empresas, portanto, controlar o raro fluxo de caixa e os enormes prejuízos no intuito de realizar os pagamentos que se apresentam mais urgentes.

Nesse cenário, a Lei de Falência tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Uma vez ajuizado o pedido de recuperação, a norma dispõe expressamente acerca da dispensa de certidão negativa para a continuidade da atividade empresarial, determinando a apresentação desta somente após a apresentação e aprovação do respectivo Plano.

Estamos tratando aqui, desse modo, de uma empresa que está em débito não só perante fornecedores, instituições financeiras, talvez empregados, mas também frente ao fisco e – com quase toda certeza – por um período que supera 3 meses e – certamente – sem restar presente o intuito doloso de apropriação ou quebra de concorrência.

Existem julgados dos Tribunais Regionais exatamente nesse sentido, entendendo que é necessário que haja comprovação do intuito doloso. No acórdão do TRF da 3ª Região [7] houve a absolvição dos sócios de uma empresa por entender o juízo que a conduta é inexigível: “Dificuldades financeiras suficientemente demonstradas permitem o reconhecimento da causa supralegal excludente de culpabilidade em caráter excepcional e por analogia in bonam partem”.

Mantendo a coerência, em outro julgado o mesmo Tribunal Regional entendeu pela condenação dos sócios, em virtude da presença de indícios de materialidade e autoria do delito: “do longo período abarcado na fiscalização é possível notar que os réus fizeram da apropriação previdenciária um modo de agir empresarial e não um recurso extremo para manutenção das atividades durante um período excepcional de crise”.

Aduz corretamente – em nosso entender – que a legislação prevê um mecanismo destinado a auxiliar empresas que enfrentam dificuldades financeiras: a recuperação judicial, que teria permitido a empresa equacionar suas dificuldades de caixa dentro da lei, ganhando prazo para o pagamento de seus credores e, dessa forma, ter novo fôlego para saldar seus deveres tributários. No caso em comento a empresa preferiu decidir quem e como pagar, descartando o instituto que poderia lhe assistir.

Entendemos, portanto, que é sobre a generalização do não pagamento de tributo enquanto tipo penal delituoso que devemos nos debruçar para evitar maiores prejuízos ao contribuinte, posto que aparentemente tal medida penal veio apenas coagir os devedores (estaduais) – e potencialmente em situação de dificuldade financeira – ao pagamento dos valores em aberto perante a administração pública.

O instituto da Recuperação Judicial, nesse cenário, deve ser analisado como um balizador da criminalização do não pagamento do ICMS declarado e não pago, em especial quando presentes os requisitos que autorizam a concessão do benefício que permite a reestruturação empresarial e a manutenção da força produtiva.

A Recuperação Judicial pode e deve ser utilizada como meio legítimo do devedor demonstrar ao fisco a sua boa-fé, a ausência de dolo e, portanto, o não preenchimento dos elementos do tipo penal do inciso II do art. 2º da Lei 8.137. Deve ser considerada – como hoje é – um instrumento de soerguimento empresarial visando a manutenção da força produtiva, dos empregos e, por fim, colaborando com o restabelecimento e manutenção do setor econômico a que pertence.

A Recuperação Judicial, em suma, pertence ao rol de excludentes de culpabilidade nos casos de acusação de crime de apropriação indébita.

*Adriana Lacerda é sócia da área tributária do Gameiro Advogados