BRASÍLIA – Especialistas em tributação afirmam que o parecer do projeto de reforma do Imposto de Renda em discussão na Câmara amplia as distorções do sistema tributário brasileiro ao aumentar as diferenças na forma como as pessoas são tributadas e seria melhor que fosse enterrado de vez.

O Estadão perguntou se o projeto, que teve a sua votação adiada por três vezes em meio a pressões, tem ainda conserto diante dos lobbies para novas concessões que apareceram na última hora. Para alguns deles, é melhor dividir o projeto e aprovar somente a correção da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) e deixar para mexer na tributação da renda no País quando o debate estiver mais maduro.

O impasse para esse caminho, no entanto, é como compensar a perda de receita com o aumento da faixa de isenção (dos atuais R$ 1,9 mil para R$ 2,5 mil) e a correção da tabela. O governo também utilizou a taxação da distribuição de dividendos para lançar o novo Bolsa Família e cumprir a legislação fiscal que exige compensação quando um novo gasto é criado.

Na área econômica, após a ampliação das isenções, a preocupação é com o risco fiscal: o custo da proposta e seu impacto nas contas públicas. Apesar do apoio oficial do ministro da Economia, Paulo Guedes, a avaliação interna é de que o projeto não serve se ampliar o risco fiscal num ambiente já conturbado entre os investidores, como mostrou o Estadão. Nesse caso, o melhor seria focar na votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que parcela os precatórios. A Receita Federal também tem alertado para os problemas no parecer.

Diretor do Centro de Cidadania Fiscal, Bernard Appy tem passado os últimos dias trabalhando em tabelas e dados para mostrar com números e exemplos as distorções no sistema, principalmente depois que o relator, deputado Celso Sabino (PSDB-PA), estendeu a isenção para dividendos de empresas do Simples e do lucro presumido até R$ 4,8 milhões.

“Não tem conserto”, diz ele. “O governo diz que está tributando os mais ricos. Mas, para os sócios de regimes simplificados, os PJs, está tributando menos os mais ricos. Um sócio de uma empresa de lucro presumido que tem renda de R$ 100 mil por mês, desde que a empresa fature até R$ 4,8 milhões por ano, vai ser menos tributado do que é hoje, ampliando uma distorção que já existe”, alerta.

Appy dá um exemplo: da forma como o relatório está, enquanto um trabalhador com carteira assinada paga 37,8% de imposto no total, um profissional liberal (médico, advogado, contador, economista) que optou pelo regime de lucro presumido vai ter a carga reduzida dos atuais 11,9% para 7,9%.

“O atual texto do projeto de lei, cuja versão final para votação segue desconhecida após diversos e constantes anúncios de mudanças, cria exceções na tributação dos dividendos, favorecendo justamente o topo de renda”, diz a economista Grazielle David, da Tax Justice Network, organização internacional de pesquisa. Para ela, a atual proposta da reforma do IR deve ser abandonada porque se tornou um leilão e acabaria resultando em aumento de ineficiência e desigualdade.

Ex-secretário adjunto e de Fiscalização da Receita, Paulo Ricardo Cardoso avalia que o projeto já saiu do governo com muitos problemas e ficou pior no Congresso. “O projeto recebeu muitas alterações, com a boa intenção do relator talvez de consertar, ele piorou”, diz.

Ao Estadão, Celso Sabino nega que esteja havendo pressão dos parlamentares e do governo para não votar o seu projeto. “Não vi movimento nenhum (para não votar). Só fofoca”, afirma. “Não tem isso, não. Falo com Paulo Guedes todos os dias. Estamos trabalhando em conjunto.” Segundo ele, há uma pressão de pessoas que não querem pagar pela distribuição de lucros e dividendos.

O relator garante que não vai protocolar outro substitutivo. Na prática, isso significa que, se o projeto for à votação, as novas mudanças serão feitas no plenário por meio de emendas ao parecer. Sabino citou apoio em nota da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) – Estados e capitais, no entanto, se posicionaram contrários – e do Sebrae (entidades patronais, como a Confederação Nacional da Indústria, porém, também se opõem ao texto).

Não tem conserto. Tem que ser revista a tributação da renda no Brasil. Tem problemas distributivos injustificáveis. O governo deveria ter identificado o problema e proposto como vai solucionar. Não identificou o problema e apresentou uma proposta. O governo diz que está tributando os mais ricos. Mas para os sócios de regimes simplificados, os PJs, está tributando menos os mais ricos. Um sócio de uma empresa de lucro presumido que tem renda de R$ 100 mil por mês, desde que a empresa fature até R$ 4,8 mil por ano, vai ser menos tributado do que é hoje, ampliando uma distorção que já existe. Tem problemas também nas empresas de grande porte. A tributação da empresa é uma antecipação do imposto devido pelo sócio. Tem sócio de grande empresa hoje que, na prática, está pagando perto de 34% e tem sócio de grande empresa que está pagando 10% de alíquota efetiva do IR. O que acontece com o sócio de grande empresa? O grosso do lucro da empresa ele reinveste. Seja na própria empresa ou em outra empresa do mesmo grupo através de uma holding. Apenas o lucro que distribuído para ele, para o consumo dele, que é uma parcela pequena da renda, é que vai tributado na distribuição. Provavelmente, esse grande sócio de empresa vai pagar menos imposto do que pagava hoje. Quem vai pagar imposto é o acionista da grande empresa que não tenha holding, que é o pequeno e médio acionista da grande empresa. Alguns desses acionistas têm renda alta? Sim, mas não resolveu o problema distributivo no Brasil. Uma parte da solução passaria por aproximar a alíquota efetiva da nominal na grande empresa. A boa reforma, que a maioria dos países fez, foi reduzir a alíquota da empresa aumentando a base. Teria uma perda de receita menor e a partir daí poderia começar a integração na tributação do acionista.

Com esse governo e essa liderança do Congresso, melhor enterrar. Ficou sem conserto. Já cedeu demais a grupos de interesse. Difícil voltar atrás. Já ficou claro que não vão defender os interesses prioritários. Então, passar agora gera um imbróglio para um governo futuro. Porque a reforma está muito ruim nessa configuração, seja para o Fisco, seja em caráter de melhorar a progressividade (fazer com que o rico pague mais imposto proporcionalmente que o pobre) do Imposto de Renda. E aí dificulta uma nova reforma num governo novo, pois vai ter o argumento: “a reforma já foi feira”. Os grupos de interesse se organizam. Fica ainda mais difícil. Melhor esperar 2023 na torcida de que teremos representantes mais capazes de desenhar uma reforma justa.

Esta reforma se transformou em uma colcha de retalhos. Iniciou hipertributando a todos, e agora, querem que as médias e grandes empresas, que mais empregam, subsidiem quem está no Simples ou no lucro presumido (um regime de tributação mais simplificado muito usado por profissionais liberais, como médicos e advogados). Além disso, a extinção dos Juros sobre Capital Próprio (uma forma de remuneração dos acionistas com abatimento no imposto a pagar) certamente inibirá os investimentos. O que estamos vendo são alterações quase que diárias do relatório, de acordo com o porte da pressão. Infelizmente, o que se conseguiu foi um repúdio generalizado, onde a tão propalada simplificação não existe. Não resolve o problema do governo e aumenta os preços de produtos. Não é possível analisar somente duas fases da reforma tributária, que tributam fortemente grande parte dos setores, como no caso da unificação do PIS e da Cofins e a reforma do IR. Onde estão as outras duas reformas, desoneração da folha e imposto digital? Na realidade a reforma , no momento, pode ser aproveitada somente para corrigir as faixas da tabela do Imposto de Renda.

O projeto não saiu de forma adequada do governo para o Congresso. Já saiu com muitos problemas. No Congresso recebeu muitas alterações, com a boa intenção do relator talvez de consertar, ele piorou. O projeto está muito ruim. Nessa atual conjuntura, o melhor que poderia ser feito é esquecer essa alteração esse ano do IR. O risco é muito grande de fazer coisas erradas, inclusive, prejudicando a arrecadação e investimentos. Não é questão de ser contra ou a favor da tributação de dividendos. Para que mexer na tributação das empresas só para mudar o nome da rubrica? Se eu baixo a alíquota do IRPJ e tributo os dividendos, e o ministro Paulo Guedes jura de pé junto que isso não vai aumentar ou diminuir a arrecadação, por que fazer isso? Qual o ganho? No final do dia, soma, divide e multiplica, é o que tiver que pagar de DARF. Não importa se esse pagamento é a título de dividendos ou de IRPJ. O que importa é o custo tributário. É isso que vai para a planilha de custos das empresas, na composição dos preços dos produtos. Mudar só para mudar. Entrar no modismo de que o Brasil agora está tributando dividendos. Com o discurso de que “agora estamos tributando os ricos”, isso é balela. É papo-furado. Não tem lógica. Não tributamos dividendos desde 1995.

Eu vivi (na Receita) muito tempo antes e depois disso. Tínhamos muitos problemas de distribuição disfarçada de lucros. Eram processos e mais processo, autuações da Receita. Veja como é fácil. Se distribuir lucro paga imposto, então, não vou distribuir. Eu, empresário, vou comprar a Ferrari para o meu filho e vou botar ela na empresa. Vai ser como se fosse um patrimônio da empresa. Eu vou comprar qualquer outra coisa que uso para consumo pessoal e coloco na empresa. É o que se chama distribuição disfarçada de lucro. Vai ser um inferno! Não só para a fiscalização, como para as empresas que vão viver sob fiscalização. E a Receita não tem quantitativo para fiscalizar todas as empresas. Estamos saindo de um modelo mais tranquilo e seguro para um modelo só para satisfazer o ego de alguém e dizer: “ah agora no Brasil estamos tributando dividendos”. Bobagem!

O projeto não deveria ser abandonado, inicialmente porque a tributação de dividendos já foi devidamente digerida pela sociedade. Depois porque a redução do imposto corporativo liberaria recurso importante para novos investimentos. Mas a questão de empresas menores deve ser resolvida não pela isenção, como está sendo proposto, mas sim pela adoção de uma tabela progressiva exclusiva para tributação de dividendos, gerando inclusive arrecadação maior.

Todos os entes federativos devem considerar que o IRPJ vem perdendo arrecadação. Em 2008 ele representava 2,84% do PIB e em 2018, 1,73%. O resultado viria no médio prazo com o crescimento da economia. Compensações de curto prazo podem ser propostas, mas sem gerar mais distorções no sistema tributário.

O Brasil é um dos poucos países no mundo em que os mais ricos não pagam imposto de renda sobre lucros e dividendos que recebem. Enquanto isso, as pessoas que recebem salário são mais tributadas em proporção a sua renda. Com isso, aumentam as desigualdades no País. Isso poderia ser mudado com a reforma do imposto de renda que está tramitando no Congresso. Entretanto, o atual texto do projeto de lei, cuja versão final para votação segue desconhecida após diversos e constantes anúncios de mudanças, cria exceções na tributação dos dividendos, favorecendo justamente o topo de renda. Ainda, indica que não irá mais acabar com os juros sobre capital próprio, que é único no Brasil; e reduz em excesso o imposto de renda das empresas, indo na direção contrária do resto do mundo, que está justamente buscando aumentar a tributação das corporações por meio de um imposto mínimo global. Na redução do IRPJ afeta os fundos de participação dos Estados e municípios, e na redução da CSLL afeta o orçamento da seguridade social. O pior: como ocorrerá perda de arrecadação com o IR, a proposta ampliará o maior problema da carga tributária brasileira, que é justamente o excesso de tributação sobre o consumo e a baixa de tributação sobre renda, patrimônio e riqueza, o que acaba fazendo com que, proporcionalmente à sua renda, os mais pobres sejam justamente os que realizam maior contribuição tributária. Assim, a atual proposta da reforma do IR deve ser abandonada porque se tornou um leilão, completamente distorcida e resultaria em aumento de ineficiência e desigualdade.