A elevada carga tributária nacional é reconhecidamente um tormento na rotina do empresário brasileiro. Como não é possível contorná-la, se faz necessário sobreviver e se adaptar a essa realidade, por meio de rígido planejamento financeiro que permita não somente incorporar tal custo, como também auferir lucro para o desenvolvimento do negócio.
Reflexo de tal dificuldade pode ser expressada pelo alto nível de débitos tributários nas três esferas federativas. Afinal, aliar a voracidade arrecadatória do Fisco com a insistente crise econômica que impacta diariamente na vida do empresário não é tarefa fácil. Sobretudo para fins de sobrevivência ao mercado.
Sob a ótica do Direito Penal, justamente considerando a sua subsidiariedade na tutela de bens jurídicos quando ineficientes os demais meios estatais menos gravosos, parte da doutrina sempre sustentou que o simples não pagamento do tributo, desacompanhado de qualquer engodo ou ardil para a consecução da sonegação, por si só, configuraria mero inadimplemento fiscal — passível de sanção na via administrativa — e não crime contra a ordem tributária previsto na Lei 8.137/1990[1].
O próprio Supremo Tribunal Federal, no julgamento da repercussão geral do ARE 999.425/SC, ao reafirmar a constitucionalidade do artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/1990, destaca que as condutas tratadas nesta lei “[…] não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis […]”[2].
Por outro lado, por razões de política criminal, em matéria de direito penal tributário o Estado sempre demonstrou especial inclinação em “priorizar” o recebimento do tributo devido, do que propriamente processar e condenar o indivíduo pela prática de um crime tributário.
Em verdade, a voracidade arrecadatória do Estado permite que, exclusivamente em se tratando de crime contra a ordem tributária, o indivíduo que desejar efetuar o adimplemento do tributo devido tenha automaticamente sua punibilidade extinta, por força do artigo 83, §4º da Lei 9.430/1996[3]. E mais: há, ainda, a possibilidade de realizar o parcelamento do débito tributário, ocasionando a suspensão de uma eventual persecução penal e do prazo prescricional até o término do pagamento, quando então o efeito prático será a extinção da punibilidade, desde que a adesão ao parcelamento ocorra, nos termos da atual redação definida pela Lei 12.382/2011, antes do recebimento da denúncia criminal pelo juiz competente.
Recentemente, mais um indício do recrudescimento frente à inadimplência tributária veio à tona, a partir do julgamento do HC 399.109/SC pela 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no afã de uniformizar a jurisprudência da Corte, a partir do enfrentamento dos entendimentos divergentes existentes entre a 5ª e 6ª Turma, competentes para os julgamentos de matéria criminal.
No bojo de tal julgamento, por maioria de votos, prevaleceu o entendimento da 5ª Turma de que configura o crime tributário previsto no artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/90[4], denominado na jurisprudência pátria como “crime de apropriação indébita tributária”, a ausência do recolhimento de ICMS descontado ou cobrado, tanto em operações próprias, quanto em situações de substituição tributária, ainda que as operações tenham sido devidamente registradas e discriminadas pelo indivíduo.
Explica-se: até então, a 6ª Turma do STJ[5] sustentava que o crime não se performava quando não havia repasse de ICMS recolhido em operações próprias, mas mero inadimplemento fiscal. Isso porque, nesse caso, faltaria elemento normativo do tipo penal, na medida em que o consumidor não seria contribuinte, muito menos sujeito passivo da obrigação tributária. Assim, em tal situação fática, não haveria tributo descontado ou cobrado de terceiro, mas sim tributo devido em nome próprio por aquele que vende/comercializa a mercadoria (a quem compete o dever de adimplir com a obrigação tributária).
Também seria necessário observar se o imputado corretamente declarou as operações, sem qualquer notícia de fraude, omissão ou prestação de informações falsas às autoridades fazendárias, posto que, em tais situações, o artifício fraudulento empregado para a sonegação fiscal extrapolaria o mero inadimplemento e configuraria o necessário dolo específico para a prática do tipo penal contra a ordem tributária sob debate.
Nesse ponto, a 5ª Turma do STJ[6], por outro lado, defendia que a ausência de repasse de ICMS descontado ou cobrado sempre configura o crime de apropriação indébita tributária, sequer distinguindo se a situação fática se tratava de operação própria ou de substituição tributária.
O entendimento que prevaleceu, por maioria de votos, portanto, não somente encampou a posição que vinha sendo adotada pela 5ª Turma, como o voto vencedor da lavra do ministro relator Rogério Schietti Cruz também inovou ao tecer algumas considerações para afastar a interpretação que vinha sendo impingida pela 6ª Turma. Exemplo disso, o ministro fez uma referência histórica de que no próprio projeto de lei que deu azo à Lei 8.137/1990, o então deputado federal Nelson Jobim havia sugerido a redação de dois incisos sobre essa temática, a saber, o inciso IV, consistente em “deixar de recolher aos cofres públicos […] tributo ou contribuição que tenha retido na fonte” – que seria ligado aos tributos diretos nos quais houvesse a responsabilidade por substituição tributária — e o inciso V, consistente em “deixar de recolher aos cofres públicos […] tributo ou contribuição recebido de terceiros através de acréscimo ou inclusão no preço de produtos ou serviços e cobrado na fatura, nota fiscal ou documento assemelhado” — que trataria da descrição de recolhimento de tributos indiretos, incidentes sobre a cadeia de produção. De modo que a redação final do dispositivo do inciso II do artigo 2º, ainda que de pouca técnica, como o próprio ministro reconhece, muito embora contenha expressões diferentes, acabou por unificar ambas as condutas com as expressões “descontado” ou “cobrado”.
De maior destaque, ainda, está a afirmação do ministro relator de que o crime de apropriação indébita tributária pressupõe a inexistência de clandestinidade, tal qual a apropriação indébita comum do Código Penal, razão pela qual pouco importaria para a prática do crime o fato de o indivíduo ter registrado, apurado e declarado corretamente as operações. De modo que, cai por terra qualquer argumentação de que apenas quando houvesse o emprego de um engodo para a prática da sonegação (dolo específico) é que se estaria diante do crime, ao invés de mero inadimplemento fiscal.
Desta maneira, a nova orientação fixada pela 3ª Seção do STJ veio a coroar e reforçar rançosa jurisprudência dos Tribunais pátrios pelo recrudescimento cada vez maior da sonegação fiscal, bastando a ausência de recolhimento tempestivo do tributo para a configuração de um crime contra a ordem tributária (dolo genérico) e restando desnecessária a averiguação de eventual presença (ou não) do elemento subjetivo especial (intenção de fraudar).
Com isso, em verdade, desvirtua-se toda a dogmática de direito penal mínimo, na medida em que o mero inadimplemento fiscal, desconexo de qualquer evidência de fraude, omissão ou prestação de informações falsas, passa a ser igualmente criminalizado.
Não se olvida, portanto, do impacto para o próprio mercado que a alteração da jurisprudência do STJ tende a ocasionar, se assim mantida e seguida pelas instâncias inferiores, porquanto o empresário que, em momento de crise e instabilidade financeira, opta pelo pagamento de seus empregados e fornecedores, em detrimento de obrigações tributárias passa a ser equiparado e criminalmente responsabilizado na mesma vala comum daquele que ludibria o Fisco, que omite dolosamente operações tributáveis ou presta informações falsas às autoridades fazendárias para, desta maneira, sonegar tributos.
Muito embora a decisão do STJ se revele um importante precedente favorável aos órgãos de persecução penal e de aplicabilidade imediata pelas instâncias judiciais inferiores, é certo que ainda assim poderá ser revisto pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de apreciação do Recurso Ordinário em Habeas Corpus interposto pelos Impetrantes do writ sob estudo[7].
Resta-nos, portanto, aguardar a palavra final da suprema corte sobre a discussão posta em voga, podendo alterar o entendimento do STJ, em consonância com a dogmática do direito penal mínimo e o postulado da legalidade penal, ou manter o precedente em questão, endossando, assim, uma equivocada criminalização do mero inadimplemento fiscal e a utilização do direito penal como efetivo mecanismo de arrecadação do Estado.
[1] “[…] a desonestidade passível de incriminação não se apresenta pelo não pagamento do tributo, mas pelo engodo, embuste, pelo ludíbrio a que a Fazenda Pública é conduzida por meio dessas ações, dificultando-se, ou, às vezes, impossibilitando-se a descoberta do débito do contribuinte criminoso […]” (DERZI, Misabel Abreu Machado. Alguns aspectos ainda controvertidos relativos aos delitos contra a ordem tributária. In: FRANCO, Alberto Silva; NUCCI, Guilherme de Souza (Org.). Direito Penal: Leis Penais Especiais II, v. 8, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 444).
[2] ARE 999.425 RG, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. em 02/03/2017, DJe 16/03/2017.
[3] “§ 4o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento”.
[4] “Constitui crime da mesma natureza […] deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos […]”
[5] Nesse sentido, confira-se: AgRg no RESp 1.465.259/GO, de relatoria do Min. Sebastião Reis Júnior; RESp 1.543.485/GO, RHC 77.031/SC e AgRg no RESp 1.632.556/SC, todos de relatoria da Min. Maria Thereza de Assis Moura.
[6] Nesse sentido, a título ilustrativo, temos: RHC 42.923/SC, de relatoria do Min. Felix Fischer; RHC 44.465/SC, de relatoria do Min. Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador Convocado do TJ-PE); e RHC 44.466/SC, de relatoria do Min. Jorge Mussi.
[7] O RHC foi distribuído sob 163.334, de relatoria do ministro ROBERTO BARROSO, ainda sem previsão de julgamento de mérito.
Fonte: Consultor Jurídico
Luis Fernando Ruff – especialista em Direito Penal Econômico, é advogado associado da área de direito penal empresarial do Chenut Oliveira Santiago Advogados.